A vida é mesmo um teatro? Em Cães da Província, Romance escrito pelo gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil, esta expressão pode ter um significado incomum. Pois o mesmo relata a história trágica do Dramaturgo José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo-Santo.
No Romance, o Rio Guaíba espelha a provinciana Porto Alegre das últimas décadas do século XIX. De vista muito bela e de porto muito alegre, a cidade se mistura aos seus cidadãos. Estes, e a paisagem, podem ser vistos pela fotografia impecável do retratista oficial da cidade Luiz Terragno. A fotografia traz o tempo passado e o retém para as insinuações do leitor. Eis que de repente, surge uma figura estranha. Um homem alto magro, de cabelos desalinhados e olhos muito verdes. Quem será? Caminha rápido em direção ao Guaíba. Senta-se à sua borda e o rio o reflete intensamente.
A imagem de Qorpo-Santo tornou-se um mito, motivo de escárnio para muitos e de respeito por outros, muito poucos, porém. Assis Brasil, em seu Romance, reconstrói a lenda do Dramaturgo que não teve nenhuma de suas peças encenadas até a metade do século XX, por serem ainda desconhecidas.
Esta reconstrução não se dá através de tijolos e de cimento ao modo rudimentar. Pelo contrário, esta sedimentação ocorre de forma a expor Qorpo-Santo não só em sua sobriedade, mas também em sua alucinação. Estes estados fundem-se, e a personagem vai tomando forma. Pela sua cabeça desfilam imperadores, como Napoleão, D. Pedro I e D. Pedro II; militares como David Canabarro e até o Papa Pio IX. Enquanto a cidade burburinha e trama contra sua existência.
Qorpo-Santo, sofreu um processo de interdição por ter sido considerado louco, vítima de uma doença incurável, chamada monomania. De acordo com o Romance, a esposa de Qorpo- Santo foi responsável por esta interdição. Inácia considerava que ele não tinha condições de administrar seus bens. Com certeza este é o episódio central. No entanto, há outras narrações simultâneas que é a do açougueiro das lingüiças e a do amigo de Qorpo-Santo, o comerciante Euzébio que assassina sua esposa depois de um processo longo e cheio de conflitos. Eis um tema policial no Romance.
Além disso, o elemento Metaficcional está presente quando discute a perspectiva do intelectual e da arte brasileira. Ou, mais especificamente, quando o protagonista cria seu teatro e o mesmo é inserido no corpo do texto. O romance também aborda os questionamentos direcionados aos momentos finais do Romantismo, comparando este ao Realismo. O próprio texto do romance lembra a escola realista e o Foco Narrativo, que apresenta o narrador onisciente, remete aos escritos de Machado de Assis.
Outra característica marcante está na temática da identidade e da marginalização do homem que se vê prisioneiro de seus próprios atos. A construção do romance se dá em forma de espelho, aspecto este explicitado nas primeiras páginas do Romance: “-Olhe lá, Qorpo-Santo, o rio parece um espelho.”(pg 18) . Lembrando ainda que Cães da Província discute a relatividade dos conceitos e o isolamento do ser humano e é instigante quando menciona a antropofagia.
Mas, sobretudo, o tom teatral se sobressai, pois esta é a história de um homem essencialmente de teatro. De acordo com Guilhermino César, Qorpo-Santo é o criador do Teatro do Absurdo em pleno século XIX, pois as características de suas peças são consideradas modernas e se comparam a Ionesco, ou mesmo a Jarry. Assim, criador e criaturas esbarram-se nas esquinas. As autoridades oficialmente constituídas são expostas desde seus pensamentos mais íntimos. As ruas transformam-se em um imenso palco de movimento contínuo. Holofotes orientam atores. Onde não se distingue realidade de representação.
Obra:
Cães da ProvínciaAutor:
Luiz Antônio de Assis BrasilEditora:
Mercado Aberto-Porto AlegreMaria Helena de Moura
Arias é jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela UEL.