Em abril deste ano, o cineasta espanhol Victor Erice reencontrou seu amigo pintor Antonio López García num ciclo apropriadamente chamado Encontro e Consciência, na Fundación Canal de Madrid. O advérbio é usado a propósito de um raro encontro de 22 anos atrás em que ambos, de forma consciente, rodaram um filme destinado ao fracasso, O Sol do Marmelo, que, apesar disso, ganhou o grande prêmio do júri no Festival de Cannes de 1992. Digo fracasso porque tanto López como Victor Erice sabiam, desde o início das filmagens, que jamais atingiriam a meta proposta pelo pintor: a de capturar o esplendor de um marmelo no justo momento em que ele, já maduro, está prestes a cair da árvore. Como Cézanne, López conclui que a luz é uma abstração, que jamais poderá representar na tela essa transição entre vida e morte, a passagem em que a luz, seja a da aurora ou a do crepúsculo, não mais ilumina.
Cézanne descobriu que a luz é algo impossível de reproduzir, por sua instabilidade, mas que se pode representar pela cor, conforme a intuição dos impressionistas. Não a cor externa, mas vibrações cromáticas que emanam do objeto representado. López, como filho de lavradores, tenta inutilmente ser fiel ao espectro do marmelo que vê à frente. No fim, conclui que é impossível pintá-lo. Opta por desenhar a árvore folha por folha, fruto por fruto, num diagrama que revela o projeto racional do desenho, mas abre mão da intuição, da sensualidade pictórica.
López tinha um tio com o mesmo nome, pintor de paisagens que o iniciou na arte. Definido como um hiper-realista, a exemplo do pintor norte-americano Edward Hopper (1882-1967), o espanhol ficou conhecido por suas atmosféricas paisagens madrilenhas e interiores desolados em que seus personagens circulam como espectros de Ibsen. É sintomático que, após pintar o sol do marmelo, López, admitindo o fiasco, tenha partido para o pragmatismo ao aceitar a encomenda de pintar a família real espanhola (levou 18 anos para concluir a tarefa). Hoje, aos 78 anos, dedica-se a esculpir as cabeças dos netinhos em tamanho gigantesco, como as do australiano Ron Mueck. Mas não abandonou a pintura. A cada outono, ainda tenta pintar o marmeleiro que conserva no quintal de seu ateliê.
Victor Erice definiu O Sol do Marmelo como um diário elaborado a partir da captação direta dos fatos – o cotidiano do pintor, de sua mulher Maria Moreno, também artista, e dos pedreiros poloneses que trabalham na reforma do ateliê. Seria uma docuficção se o termo existisse na época, mas Erice busca uma relação menos evidente entre a pintura e o cinema, que tentam não só capturar a luz, mas o real, seguindo, como disse Bazin, o mesmo “impulso mítico de superar o tempo mediante a perenidade da forma”.
Em tempos de orgia audiovisual, em que se despreza o tempo, a tradição e o bom cinema, O Sol do Marmelo afirma-se como obra de um diretor e um pintor (o roteiro é de ambos) missionários, empenhados num duelo com os ciclos da natureza – López compete com o tempo ruim, que insiste em manter ocultos os raios de sol, metáfora da própria mortalidade do autor/criador.