Na sua tese de doutorado sobre Imagens Kaiowá do sistema social e seu entorno (USP-2004), o técnico agrícola, indigenista e antropólogo Levi Marques Pereira estudou as imagens que a população Guarani-Kaiowá, habitante da região de fronteira Brasil/Paraguai, sustenta sobre si, sobre os outros e sobre o entorno com o qual interage. Os Kaiowás fazem parte da família lingüística Guarani que, no Brasil, reúne também Ñandeva e Mbya, todos constituem a população Guarani. Ele utilizou o termo Guarani para designar as características gerais aos três subgrupos e reservou Kaiowá para o seu grupo de estudo.

Quais as dificuldades que o antropólogo tem ao estudar outra sociedade? Levi Pereira explica que “a convivência com a diversidade, como está amplamente documentada na bibliografia antropológica, exige o esforço de desprendimento de nossas convicções. Essa situação gera crise e a necessária e difícil convivência com a incerteza, ao mesmo tempo que enriquece e amplia os horizontes da experiência humana.”

O antropólogo enfatiza o fogo doméstico como unidade sociológica mínima no interior do grupo familiar extenso ou parentela composta por vários fogos, interligados por relações de consangüinidade, afinidade ou aliança política. Para o Kaiová, no fogo deve prevalecer a amabilidade, as pessoas devem se sentir confortáveis e à vontade umas com as outras. Quando isso não ocorre, o fogo se dissolve.

O fogo reúne idealmente um homem, seus filhos e filhas solteiros e sua esposa. Mas é comum encontrarem-se ai parentes consangüíneos do esposo ou da esposa agregados ao fogo, filhos adotivos que podem ou não ser parentes consangüíneos ou afins, pode ainda reunir mais de uma relação de conjugalidade, ou seja, o genro ou o filho casado morando temporariamente com o sogro, disse o antropólogo.

A fase imediatamente anterior ao casamento é marcada pelo distanciamento do homem e da mulher de seus respectivos fogos, como prenúncio que constituirão seus próprios fogos. Os fogos entre os Kaiowás são controlados por mulheres, que têm o poder de unir e alimentar os integrantes. Do ponto de vista econômico, o fogo é o espaço de transformação e consumo dos alimentos e espaço de sociabilidade.

O fogo está, portanto, inserido no padrão de convivência pautado pelas regras de solidariedade definidas pela economia de reciprocidade. Os cônjuges que se separam ficam sem fogo, no “gelo”, na condição de solteiros. Precisam, portanto, em breve espaço de tempo, reconstituir um fogo.

O fogo culinário é destacado por Pereira como símbolo de vida. Nunca deve se apagar, e a casa é o símbolo de mediação entre homens e deuses. O fogo representa ainda o refúgio em caso de ameaças sobrenaturais e os transtornos políticos, pois é o local onde se vive com pessoas muito próximas.

Pereira lembra Meliá (1990) ao afirmar que “os aspectos da terra, nos quais economia e sociedade se mostram indissoluvelmente relacionados são, por sua vez, objeto de símbolos religiosos, reflexos de experiência religiosa”. Assim, para o Kaiowá, tal como acontece com a maioria dos povos indígenas, a economia não pode ser entendida fora dos princípios organizadores da vida social e dos valores que orientam a conduta social e religiosa.

Para Levi Pereira, a pesquisa de campo provoca uma transformação no próprio pesquisador, como afirmou: “Recentemente participei de uma oficina com jovens Guaranis e eles explicitavam o quanto se consideravam transformados pelo convívio próximo e freqüente com nossa sociedade. Na ocasião, disse a eles que também me julgava transformado pela oportunidade que tenho tido de conviver com a cultura deles. A experiência de campo parece implicar nessa transformação, ela nos impõe a necessidade de enxergar a experiência humana de outra perspectiva.”

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. E-mail:

zeliabonamigo@uol.com.br 
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