O senador que não existiu

1974. Acho que esses trinta anos que se passaram me deixam à vontade para lhes contar um fato acontecido, antes que se perca nas Calendas do Tempo. O fato, em si, teria sido trágico se não fosse cômico.

Morava em Joinville, essa cidade catarinense aqui perto, para onde me mudei a fim de dar a meus filhos uma formação germânica que, como de hábito, é disciplinada, objetiva e cumpridora. Acertei em cheio com meus adolescentes. Meu filho é o único alemão de sobrenome Silva que eu conheço.

Deixei-os nos colégios, as meninas no Santos Anjos e o menino no Bom Jesus, dirigido prussianamente pelo Pastor Michels e fui para o Jornal de Joinville onde trabalhava, escrever minha coluna Atrás do Tôco.

Sobre minha mesa estava o jornal A Nação, de Blumenau. Uma grande foto abria a 1ª página, com o título: “Senador paulista visita Blumenau”.

Quando olhei a foto, até as pernas da cadeira onde estava sentado bambearam. Imaginem as minhas…

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Eu e o Antônio Roque Araújo fomos amigos desde as priscas eras da juventude. Bem humorado, trabalhador compulsivo, alegre, vivia maquinando brincadeiras nas quais ele era quem mais se divertia. Dava-se ao trabalho de montar lances de humor e os levava até o desfecho gozador e brincalhão.

Aquela foto do jornal blumenauense era documental do espírito do Araújo. Nela apareciam o prefeito Felix Theiss, o assessor de Imprensa José Augusto de Carvalho Nobrega, o Senador e seu Chefe de Gabinete

Ocorre que o “Senador” reconheci era o Dito Andrade, dono de uma revenda de veículos usados em Sorocaba e o “Chefe de Gabinete” era o Araújo. Foto em pose bem marcada na sala de reuniões do prefeito Theiss.

Excusado é lembrar: sentei no carro e “voei” para Blumenau. Aquela brincadeira do Araújo pensei ia acabar mal, era demais.

Chegando na Prefeitura perguntei pelo Prefeito e o funcionário me respondeu que ele estava no almoço de homenagem a um senador de São Paulo, num restaurante da Ponta Aguda.

Cruzei o rio Itajaí com o coração aos saltos, entrei no salão do restaurante, entreparei na porta e vi a mesa formada: o prefeito, o Dito Andrade, secretários municipais, o Araújo. O Secretário de Agricultura fazia uma exposição num painel sobre projetos em andamento da administração Felix Theiss.

Quando me viu, o Araújo pôs o indicador cruzado na boca, pedindo silêncio, e veio até mim:

– Araújo, essa é demais! Você e o Dito Andrade vão mas é pra cadeia!

– Vamos nada, Wilson, olha lá, o Dito não parece mesmo um senador? Comprei até um terno novo pra ele!

Realmente, compenetrado e atento no terno novo com colete, o Dito parecia mesmo um senador. Apesar de simples dono de agência de carros usados, o Dito Andrade tinha certas letras, interessava por política, assinava o “Estadão”, sabia conversar. Talvez por essas razões não tivesse dado algum vexame que o traísse. Araújo, me conte como é que isso começou!

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Não tinha por que se fazer de rogado. Disse-me que saíra de São Paulo a serviço (era Secretário Executivo da Unimaxion Associação de Revendedores Massey Ferguson do Brasil) para uma reunião com o Dino, presidente da Associação, em Itapetininga, a uns 60 Km de Sorocaba. Passara na agência do Dito e o convidara pra uma ligeira ida até a cidade vizinha, voltariam logo. O Dito Andrade só começou a desconfiar que alguma coisa estava tramando o Araújo quando este passou a 130 por hora no trevo de Itapetininga:

– Ô, Araújo! gemeu o Dito Já passamos o trevo de Itapetininga!

– Ah, Dito, esqueci de lhe dizer. Eu vou até Blumenau lá em Santa Catarina, viagem comprida, vou levar você pra companhia…

– Araújo, seu merda! E meus negócios, minha loja?

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Chegaram em Blumenau. Na recepção do Hotel Himmelblau, o Araújo estava preenchendo a ficha quando o rapaz perguntou se os dois ficariam no mesmo apartamento. Veio o estalo na cabeça do Araújo:

– Não. O Senador prefere ficar só num apartamento.

– Senador? espantou-se o rapaz.

– É sim. É o senador Benedito Andrade, da ARENA de São Paulo, presidente da Comissão de Agricultura do Senado.

Subiram. O Araújo pensou que a brincadeira não passaria da recepção, mas, se enganou. A Gerência do Hotel avisou a TV Coligadas, a Rádio Blumenau e o Jornal de Santa Catarina que se hospedara no Hotel uma alta personalidade política de São Paula.

Quando desceu, sozinho, para o café da manhã seguinte, o Araújo deu de cara com jornalistas querendo uma entrevista com o Senador Benedito Andrade. Como um rojão acordou o Dito: “- Bicho, acabei de nomear você senador por São Paulo. O pessoal de TV, jornal e rádio está esperando lá na recepção. Prepare-se, vou lhe dar um treinamentozinho aqui, antes do café. Você é presidente da Comissão de Agricultura do Senado, Dito. Já imaginou que importante?”.

O Dito entrou na roda do Araújo, não se saiu mal nas entrevistas, logo chegou um funcionário do Gabinete do Prefeito para uma visita à Prefeitura e a homenagem com um almoço, após a visita à fábrica de laticínios Jensen. Desse encontro com o prefeito Felix Theiss é que saíra a foto publicada e que me colocara em brasas.

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O Araújo me pediu que ficasse calminho, que nada iria acontecer, à noite haveria um jantar na casa do empresário Carlos Stern e ele e o Dito cairiam na estrada, de volta pra Sorocaba e São Paulo.

Realmente, nada aconteceu, além do almoço, jantar, brindes, saudações e entrevistas. O Senador Benedito Andrade, da ARENA de São Paulo, havia visitado Blumenau onde foi recebido e tratado com as honrarias merecedoras do alto cargo político que desempenhava em Brasília.

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Ninguém se deu ao trabalho de verificar se havia um senador com aquele nome, de checar a veracidade da informação que o Hotel passara.

Parece-me, assim de longe, que esse é um costume brasileiro, ninguém se dá a trabalhos de checagem ou verificação.

Daqui a 10 anos é que vão descobrir que um ex-torneiro mecânico se fez passar por Presidente da República.

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Mesmo em Curitiba houve algo parecido. Mais ou menos na mesma época surgiu por aqui um desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, solteirão, que se instalou num hotel do centro da cidade.

Seus conhecimentos jurídicos eram de tal monta e importância que logo ficou conhecido nos meios profissionais da praça. Analisava processos de colegas, emitia pareceres, arrazoava citando leis, capítulos, incisos e artigos, de memória. Enfim, um luminar das Ciências Jurídicas. Cobrava pelos trabalhos e ia vivendo bem e confortavelmente no Hotel.

Chegou a dar a Aula Magna na abertura do curso de Direito na Universidade Federal do Paraná com um pronunciamento que embasbacou o governador Ney Braga, Reitor e professores da UFP tal a qualidade jurídica do seu discurso. A revista “Veja” publicou uma foto da célebre Aula Magna.

O “desembargador” cometeu um só erro: envolveu-se com uma funcionária do TJ o que causou ciúmes de um colega dela que resolveu investigar em São Paulo a origem do gênio jurídico que empolgava Curitiba.

Descobriu: havia um desembargador com o mesmo nome, só que falecido. O desembargador que fazia sucesso em Curitiba e nos meios forenses da Capital era um impostor. Ou melhor, era um egresso da Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, em cuja biblioteca havia adquirido os vastos conhecimentos jurídicos com os quais esnobou Curitiba. Avisado por um amigo de que fora descoberto, o “desembargador” deu no pé rumando para uma galáxia próxima da estrela Alfa de Centauro e nunca mais foi visto e nem dele conhecimento tiveram.

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Há alguns anos meu amigo Antonio Roque Araújo cometeu a última brincadeira, aliás, sem graça. Safenado, caminhava pelo parque Ibirapuera, em São Paulo, quando foi surpreendido por um infarto fulminante.

Wilson Silva

é jornalista e escritor.

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