(A propósito de Arcabuzes)
O Romance do Brasil ainda não fora escrito. Talvez tivesse sido, se Machado de Assis houvesse nascido e morado no Paraná.
Não tivemos Guerra e Paz, Os Miseráveis, ou obras menos ricas de argumento como David Coperfield, E o Vento Levou, e tantas outras, todas porém retratando um país, o povo, seu caráter.
Existem autores – Howard Fast, Morris West, Pearl S. Buck, entre outros – capazes de retratarem países e civilizações que não os seus.
Percebe-se a lacuna na literatura nacional. De inegável riqueza, com romance sulino ou nordestino, urbano ou rural, suscita a construção, na qual se espelhe – o rosto e coração – por inteiro a Pátria. Há, por exemplo, uma concepção brasileira do mundo e da vida, nitidamente humanista. Mas sem a devida expressão na literatura, podem perder-se no passado os mais caros valores nacionais.
Certos romances, a exemplo de Marco Zero, de Oswald de Andrade, procuram retratar estados como São Paulo, Minas e outros, com fundo ideológico muito frágil, sem sucesso. Apesar dos bons escritores realistas, do sentimento de brasilidade, da Semana de 22, nacionalismo – busca temática nos motivos e folclores da terra -, marxismo, concretismo, e das incursões no campo lingüístico, a isolarem ainda mais o português, separando o país em regiões, não temos a literatura independente. Faz falta obra de idéias e de realismo social em movimento, realismo histórico. A nação corre o risco de ver o povo desligar-se de suas próprias raízes.
O romance brasileiro reproduz aspectos e situações da realidade, cuja totalidade desconhece. Os autores mostram quadros estáticos ou fragmentários, detalhes, nunca o todo nacional ou que dele dê idéia. Entre eles, também ensaístas, sociólogos e historiadores, a começar pelos da grandeza de Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Oliveira Viana, Sílvio Romero, Caio Prado Jr. ou Nelson Werneck Sodré. Permanece uma visão falsa, deformada e pessimista de uma terra tropical, com gente melancólica, impotente, de raças fracas ou tristes, agora miserável, e no m O Retrato do Brasil -,dormindo preguiçosamente “o sono colonial”.
A situação parece agravar-se e tornar mais difícil a construção, com a atualidade de artes sem pé nem cabeça, temática vazia e sem argumento.
O Romance do Brasil teria de ser, necessariamente, de idéias, expressando o homem e a sociedade, a sua história. Uma demonstração romanesca. Estética é também filosofia e sociologia.
Com união indissolúvel do enredo novelístico ao histórico, só assim um autor poderia realizá-lo. O realismo é condição fundamental num país de conteúdo riquíssimo, inexplorado e desconhecido de seus próprios habitantes. De psicologia social, mas também com traços subjetivos, não poderia disfigurar-se com historietas e exaltações de histerias, violências e erotismo.
Nas grandes obras universais de ficção as ações são motivadas em lutas dos povos, à luz de filosofias. Dura séculos a influência dos enciclopedistas, e um Vítor Hugo ainda investe contra o sistema de penas, defendendo as idéias de Cesare Beccaria. Dostoiévski penetra na alma humana com as lentes do determinismo, da psicologia, da biotipologia, da frenologia e até da fisionomia, com pleno conhecimento da realidade social de seu país , numa genial demostração romanesca da justeza do pensamento de Cesare Lombroso e da Escola Positiva. Tolstói, Sartre e tantos outros, eles próprios são filósofos. Quando não o são, têm o conhecimento dos grandes fatos de seus países. Excepcionalmente, citarei Doutor Jivago, de Boris Pasternack, para dizer que encerra um período de obscurantismo partidário político, de após Gorki, na antiga URSS, e seguido noutros países.
A base para a construção de um Romance do Brasil é o principal acontecimento de sua história. O período áureo em que, constituído o povo – as classes urbanas em ascensão – ocorre a sua revolução, o poder político desloca-se do campo para a cidade. O clímax é o da abolição da escravatura, o da queda da monarquia, da proclamação e consolidação da República. Então eclode uma guerra civil, conseqüência da contra-revolução.
É naquela sucessão de crises e episódios dramáticos que se evidenciam os valores individuais e coletivos do brasileiro. É um renascimento da pátria, com o rosto alegre, o coração amoroso e cheio de fé. Tudo que lhe faz o corpo e o tamanho surge naquele tempo, os construtores da nacionalidade, a devoção sertaneja e o fanatismo que rebela as massas, o folclore, as festas alegres na praça, as bandas, a música nova de batuque e até o carnaval. Acentua-se o desenvolvimento econômico, indústrias em capitais, formam-se companhias, sociedades anônimas. Prospera o comércio, crescem cidades e vilarejos pouco distantes do litoral. Aumenta a imigração, e o caboclo urbano ou rural aparece como o cerne humano da unidade nacional. No dia-a-dia expressam-se a bondade natural do índio e do negro, e as esperanças dos imigrantes, a fé e a generosidade do povo. A sociedade civil se organiza e se fortalece, fundam-se clubes, associações, sindicatos. A imprensa tem oficinas por todo o país, as prisões das fortalezas não contêm o idealismo dos jornalistas.
Afinal, a verdade é que, vitoriosa a revolução republicana, consolidou-se a Pátria.
O veio de ouro é inesgotável para a literatura nacional. Corre por bibliotecas, institutos, academias, círculos de estudos, arquivos públicos, simpósios, museus. Trata-se de vastíssima crônica de milhares de autores, um repetindo o outro , ano após ano. Fazem parte periódicos, biografias, monografias, diários, relatos, registros e documentos os mais diversos.
No fogo das lutas emancipadoras, com esperança de paz e de um mundo melhor, temperou-se o caráter humanista do país.
A oposição crítica a romance de enredo histórico tem em vista a dificuldade de construção. O maior desafio seria a adaptação da vida real na imaginária. O real pode ser apresentado apenas como cenário do romance. É o que explica a frustração de romances históricos sem vida literária, sem significação psicológica ou social, sem construção novelística. Para que tal não suceda, é preciso evitar o relato cru, a monotonia, apenas apoiando-se na documentação social e humana. Em suma: o documento deve ser o material da obra, nunca a sua construção.
A técnica deve consistir em fazer o dramático, o psicológico, as paixões humanas predominarem sobre o informativo. Mantendo-se a expectativa, jogando-se com o imprevisto, dizendo-se o novo sem perder de vista os conflitos humanos, os temas eternos, não existe o problema. Ainda mais que as idéias serão os móveis das ações dos personagens, com os sentimentos encarnados neles, mostrados como seres vivos.
Betina Lin (in Yale Review, Winster, 1943) previra que o romancista do futuro seria mais intérprete que repórter, um exegeta,
participante e moralista. Sérgio Miliet, comentando idéia semelhante de
Ana Seghers ( in New Masses, dez. 19, 1944), ressalta que “todo artista e escritor deve firmar em cada leitor as raízes sólidas da dignidade humana”.
Álvaro Lins reconhece que documentação social com idéias “só farão contribuir para o enriquecimento de um gênero que tornou ilimitadas e incontroláveis as suas possibilidades”.[1] Para ele, o jogo das idéias torna mais intensa a sensação de verossimilhança, advertindo contra a simples tendência de exposição de idéias, sem os requisitos de ordem literária, e contra representação de documentação social sem realização estética.
Numa visão particular, literária, não crítica, inexistem aqui os problemas. Se a distância de um século dificulta o diálogo, suscita os essenciais e uma narrativa rica de representações, com sucessão de episódios, quadros e ações significativas, inclusive com cenas subentendidas e imaginadas pelo leitor. Homens comuns ou incomuns daqueles últimos decênios do século passado, personagens reais, parecem ficção. Muitos são de outro mundo, lendários e legendários. Num romance nem é fácil diferenciá-los e evitar o surrealismo. Facilitam o entrosamento do real com o imaginário ao invés de dificultá-lo. Veja-se, por exemplo, o mundo da época da erva-mate no Paraná, que realidade fantástica. O mundo brasileiro. O mundo que deve refletir um Romance do Brasil.
[1] Jornal de Crítica, 3ª série, pág. 108, 1944 (Livraria Olympio Editora).