O escritor português: “Tudo quanto pude expressar de pior, acontece”. |
São Paulo – O que é preciso para adivinhar o futuro? Quem dá a receita é o escritor português José Saramago. “Qualquer um de nós pode ser profeta, desde que cumpra uma condição: profetizar o pior, porque o pior acontecerá”, disse ele esta semana em São Paulo.
Saramago lançou o que considera ser sua biografia autorizada, José Saramago: O Amor Possível, escrita pelo jornalista espanhol Juan Arias. A obra aborda temas pessoais, como a infância e a família do escritor, e apresentam suas idéias sobre política, religiões, literatura.
O livro sai no Brasil cinco anos após seu lançamento na Europa, e foi escrito a partir de uma entrevista que Arias fez com o autor, anos antes de Saramago receber o Prêmio Nobel de Literatura em 98. Os dois estiveram na Livraria Cultura para lançar a obra e debater com o público o tema A Literatura e o Engajamento Político.
Segundo Arias, a passagem do livro que mais o emocionou foi a descrição das lembranças do escritor a respeito do avô que, muito doente, abraçou as árvores de seu quintal e morreu dias depois. Ele lembrou, também, o evidente amor de Saramago pela esposa, a jornalista espanhola Pilar del Río. “Ela queria estar aqui, mas, por problemas familiares, não pôde chegar a São Paulo”, explicou Arias.
Saramago disse que o livro comprova a sua teoria sobre a profecia, uma vez que tudo o que previu na entrevista que deu origem ao livro ocorreu de fato. “Tudo quanto pude expressar de pior aconteceu”, constatou.
Democracia
“Como é que nós podemos continuar a falar de democracia em uma situação como a que vivemos, hoje, em todo o mundo?”, questiona. No encontro, Saramago falou do seu próximo livro, Ensaio sobre a Lucidez, que deve ser lançado no próximo ano. “É um romance profundamente político. Não no sentido de contar uma história em que políticos fazem isso ou aquilo. É político na sua essência”, disse. O livro discute uma questão fundamental: a democracia. “Vai despertar uma grande polêmica, e isso é o que eu quero que o livro faça”, resumiu. “Porque a palavra democracia não descreve corretamente a realidade atual.O verdadeiro nome é plutocracia, que significa governo dos ricos”.
“A literatura não muda o mundo”
José Saramago também falou sobre o processo de escrever. Explicou que cada livro é diferente, espontâneo. “Não tenho uma lista de títulos para ir escrevendo. Um livro acaba e eu não sei mais o que tenho para dizer”, conta o escritor, que se descreve assim: “Eu sou como uma árvore que dá fruto e não tem a certeza de dar fruto outra vez no ano seguinte”.
Seu novo livro começou a ser pensado em fevereiro deste ano. Ele conta que estava dormindo em um hotel de Madri, na Espanha, quando acordou – “às três da madrugada em ponto” – completamente lúcido. “Imediatamente o título do livro apareceu: ensaio sobre a lucidez”, disse.
Saramago foi contundente ao expor a sua posição sobre as religiões : “Elas nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Pelo contrário, as religiões são responsáveis por mortandades aterradoras. Tudo, sempre, em nome de Deus”.
Tampouco aliviou para a literatura: “A literatura não muda o mundo. É o mundo que muda a literatura, é o mundo que muda tudo”, disse. O escritor explicou que não tem a pretensão de mudar as pessoas com seus livros. “O importante é que o livro possa produzir um choque, que resulta do fato do autor estar a lhe dizer: “Está certo, você leitor está certo e o desse livro também está certo. Tudo isso é problema da sua própria cegueira'”.
Ele esclarece que não quer julgar, nem “muito menos quero que você encontre nesse livro trechos de auto-ajuda, porque o livro não foi escrito para isso. O que eu quero que você encontre é o retrato do mundo e o rosto do ser humano, que ele é feio, que ele é horrível, cruel, desumano, pois sim, mas a culpa não é minha. Ele é isso mesmo. Nós todos somos isso mesmo”, acrescentou.
Segundo ele, questões de ordem moral, ética, política e social podem estar presentes na literatura, “mas não como um manual de auto-ajuda”. Esse gênero, por sinal, tira o escritor do sério: “O único livro realmente de auto-ajuda seria aquele que cada um de nós escrevesse”, fustigou. Para Saramago, não se pode permitir que as pessoas sejam enganadas por essas obras, que buscam uma ajuda que não existe, é ilusão. “Há um limite. Quem está se auto-ajudando é o autor desse livro”, afirmou, explicando que “está cobrando seus direitos de autor à custa da credulidade das pessoas”. (LP)