Antecipando o lançamento no Brasil do livro Dude, Where?s My Country? (Cara, onde está o meu país?), que saiu nos Estados Unidos e na Europa no último dia 7 e já ocupa as primeiras posições nas listas dos mais vendidos, a W11 Editores disponibilizou uma entrevista inédita da jornalista Ana Maria Bahiana com o autor, feita em março deste ano – antes, portanto, do triunfo de Tiros em Columbine no Oscar, da guerra no Iraque e da vitória de George W. Bush nas eleições para o Congresso americano. Desde o Oscar, nenhum outro jornalista latino-americano teve acesso ao cineasta.
Na época da entrevista, Moore ainda não tinha se celebrizado como o “inimigo público n.º 1” da Era Bush, e nem sonhava com os 4 milhões de exemplares vendidos pelo livro anterior, Stupid White Men – Uma nação de idiotas – hoje na 52.ª edição -, no mundo inteiro. Muito menos com os 21 milhões de dólares que o documentário Tiros em Columbine arrecadou nas bilheterias do planeta. O tema central da conversa é a cultura da violência, enraizada nos EUA mas com metástases no mundo. E o momento não poderia ser melhor, pois o nosso Congresso também está discutindo a liberação do porte de armas.
Existe um ponto extremamente poderoso em seu filme Tiros em Columbine -quando você compara o numero de mortos nos ataques de 11 de setembro, três mil, com o número de mortos, todos os anos, nos Estados Unidos, por armas de fogo e acidentes automobilísticos; o primeiro é quatro vezes maior, o segundo é 14 vezes maior. Você parece indicar que a reação dos americanos a estes fatos é inteiramente desproporcional.
Michael Moore – Lembra daquele documentário sobre a Guerra do Vietnã, Corações e mentes? Quando Peter Davis, o diretor, pergunta algo ao general Westmoreland e ele responde: “Os vietnamitas, os asiáticos em geral, não tem o mesmo respeito à vida que nós temos no ocidente”. (Moore ri). Eu acho que há algo muito triste e trágico sobre nós, americanos.
D.H. Lawrence tem um livro maravilhoso, na verdade um longo ensaio sobre literatura comparada, e na primeira frase do livro ele diz: uma coisa que é preciso lembrar, sempre, sobre os americanos, é que eles são assassinos natos.
Nós (americanos) gostamos de pensar em nós mesmos como pessoas boas, repletos de ideais que aspiram a tudo o que há de bom no mundo: liberdade, verdade. Eu, como americano, acredito que somos melhores do que isso. Eu acredito que somos melhores do que mostro em Stupid White Men e em Tiros em Columbine. Eu acredito que podemos ser muito melhores e que algo está terrivelmente errado. Precisamos nos examinar e reconhecer que há algo profundamente errado. Barry Glassner, autor de A cultura do medo, aparece numa entrevista em meu filme e forneceu boa parte das estatísticas que apresento nele. E são assustadoras.
O que você está querendo dizer a respeito disso, com o seu trabalho?
MM – Que o problema não são as armas de fogo, em si. O problema é que há algo profundamente errado com a psiquê dos americanos. Há algo errado com a alma dos americanos. Quanto mais eu converso com pessoas de outros países, mais eu descubro, por exemplo, que há um senso de ética canadense, irlandês, francês, que diz que, se uma pessoa adoece, todos têm, coletivamente, a responsabilidade de ajudar essa pessoa. Que se uma pessoa fica desempregada, todos têm a responsabilidade coletiva de ajudar essa pessoa. Somos todos canadenses, irlandeses, italianos, espanhóis, o diabo. Somos todos humanos. Estamos no mesmo barco. Existe uma espécie de ética geral a respeito de como devemos levar as coisas.
E os americanos? Aqui a ética é cada um por si. Você caiu? Levanta sozinho. Eu, eu, eu, eu, eu. O que acontece com o outro não me afeta. Foi assim que eu fui criado. Isso é muito, muito egoísta e egocêntrico. E, no entanto está tecido na própria fibra da consciência americana.
Eu parti do incidente em Columbine, inicialmente, para investigar o que havia de errado com as armas de fogo, e rapidamente isso se tornou algo bem diferente, em termos do que eu queria dizer. Eu passei a querer dizer que estamos no início do século 21 e precisamos mudar alguma coisa no mais profundo do nosso espírito, porque se somos tão mesquinhos com nosso próprio povo, como trataremos o resto do mundo?
E, no entanto, os Estados Unidos projetam essa imagem de prosperidade absoluta, liberdade e justiça para todos…
MM – Sabe a parte mais triste da expressão “sonho americano”? É que é um sonho. E eles dizem isso, claramente. É um sonho. É estranho que não digam que é “a realidade americana”. E sabe por quê? Porque apenas para 10% o sonho vira realidade. O resto continua sonhando.
Temos 40 milhões de pessoas vivendo na pobreza nos Estados Unidos. Temos 40 milhões de pessoas que não sabem ler ou escrever acima do nível da quarta série. Temos 50 milhões de pessoas sem acesso a tratamento de saúde. Nenhum. Nenhuma forma de assistência médica. São pessoas que trabalham e não têm assistência médica. Como podemos massacrar assim nossa própria gente?
A grande promessa dos Estados Unidos é que ele seria uma mistura de todos esses povos do mundo inteiro, e todos esses povos trariam o melhor de suas culturas. Mas isso não aconteceu, e nós nem sequer discutimos isso.
Você quer dizer que os americanos desconhecem sua própria história?
MM – Completamente! Nós não falamos sobre a verdadeira história do nosso país. Porque uma grande parte dessa história é sobre como uma larga porção das pessoas que vieram para cá o fez como escravos. E como cada grupo que veio para cá foi tratado com discriminação. Os irlandeses vieram, e logo apareceram os cartazes – “nada de irlandeses”. Os chineses eram essencialmente trabalhadores escravos. E houve o genocídio dos nativos. Não sabemos de nada disso, não falamos sobre isso. Só queremos ficar falando sobre o sonho americano.
Eu mesmo… Olha, eu amo este país. É importante que eu diga isso. Há muitas coisas boas na América e eu tenho grande apreço por muitas qualidades americanas, pela simplicidade e expansividade, o que há de genuíno sobre os americanos. Eu só queria que fôssemos um povo melhor.
Nesse contexto que você explicou, como você vê seu trabalho?
MM – Como minha pequena guerra particular contra a ignorância. Minha pequena campanha particular para que Bush não tenha o controle da Câmara ou do Senado depois das próximas eleições, no meio do mandato. Eu quero que as pessoas que lerem Stupid White Men saiam falando, debatendo, conversando, fazendo perguntas. Falando de coisas que andaram ignorando durante muito tempo.
E como você vê a reação do resto do mundo? Os Estados Unidos não são exatamente a nação mais popular do mundo, neste momento…
MM – Eu imaginei que as pessoas, pelo mundo afora, iam usar Tiros em Columbine ou o meu livro como um modo de focalizar sua antipatia pelos Estados Unidos. Achei que isso ia acontecer logo de cara, em Cannes. Imagine! Os franceses tendo duas horas de um bom motivo para odiar e rir dos americanos! Mas não foi isso que aconteceu. As pessoas vêem este filme como um aviso, um alerta. Elas compreendem que se os políticos de seus países começarem a destruir a rede de segurança social que protege o povo, se eles começarem a encolher os benefícios mínimos a que a população tem direito, como saúde pública, educação, se eles começarem e reduzir seu senso ético ao nível do nosso… Como está acontecendo na Austrália, na Grã-Bretanha, desde os tempos de Thatcher, como está acontecendo na Itália… Então o que todos vão ver é um aumento da criminalidade, aumento do número de assassinatos, do número de crimes com armas de fogo.
Você acha então que o mundo vê seu filme como um espelho do que está acontecendo em seus países?
MM – Tenho certeza. Fiquei felicíssimo quando o pessoal de distribuição internacional da Alliance Atlantis (empresa canadense que co-produziu Tiros em Columbine) me disse que meu filme era o campeão de vendas internacionais da empresa. Que nenhum outro documentário havia tido um volume tão grande de vendas internacionais. E eu fico felicíssimo porque este filme pode mesmo dizer às pessoas, pelo mundo afora: parem antes que seja tarde demais. Vejam o que acontece lá na frente. Já pode ser tarde demais para nós, americanos.
Todo mundo diz que o mundo está ficando americanizado por causa dos McDonald?s e de Hollywood. Eu digo: não se preocupem com os McDonald?s e os filmes. Eles não são o problema principal. O verdadeiro problema é essa exportação, essa disseminação de uma atitude ruim e mesquinha, a criação de uma cultura de violência contra as classes pobres.
E depois do alerta, depois da indignação? O que deve acontecer para que as coisas mudem?
MM – Bom… se duas ou três pessoas começarem a ser mais solidárias e menos egocêntricas por causa do meu trabalho, e se esses dois se transformarem em dez, e estes dez em cem, é assim que essas coisas acontecem, não é? Não foi assim que as pessoas começaram a usar jeans? Porque alguém achou que isso era cool e mais um monte de pessoas concordou…
Oh! (Moore ri), eu não tenho expectativas muito elevadas para com meus conterrâneos. Eu adoraria ter uma agradável surpresa e descobrir que meus compatriotas fizeram algo bom de verdade… O filme está provocando discussão, estimulando o debate. O meu livro, Stupid White Man, foi o livro de não-ficção mais lido dos Estados Unidos em 2002, e vem sendo intensamente lido em todo o mundo. Isso é incrível! Um livro que não é de direita, que não é pró-Bush, que não ensina como você pode se tornar milionário e fala de um universo americano. Isso me dá um pouco de esperança… Meu sonho é que meu livro e meu filme continuem a ampliar seu alcance até chegar ao mainstream americano.
Você se vê prioritariamente como um cineasta?
MM – Sim, claro. Se eu quisesse simplesmente fazer discursos eu me candidataria a algum cargo público. Se quisesse fazer sermões, eu seria um pregador. E eu escolhi ser cineasta, e minha preocupação é que, se você me der duas horas de seu tempo, você vai se divertir e vai rir, vai chorar e, espero, vai pensar. Não quero que você saia do cinema deprimido e desesperado, isso seria paralisante. Quero que você saia do cinema zangado, porque a raiva leva à ação.
Meu primeiro objetivo, minha preocupação essencial é fazer filmes que eu mesmo gostaria de ver. Um filme que eu, numa sexta à noite, pagaria ingresso para ver, compraria pipoca e sairia do cinema pensando, pôxa, essas foram duas horas que valeram a pena!
Você tem tido esta sensação com freqüência?
MM – Não, nem um pouquinho. É cada vez mais raro, na verdade. O cinema está piorando, certo? Eu faço filmes e adoro ver filmes, por isso eu sei como é difícil passar duas boas horas num cinema. O cinema está muito ruim. A cópia de uma cópia de uma cópia. Será que ele consegue ficar pior do que isso?
Muitos cineastas são completamente contrários à idéia de misturar consciência política com seu trabalho no cinema…
MM – Bem, eu prefiro ser socialmente responsável. Eu honestamente acredito que estou fazendo um trabalho socialmente responsável. E eu gostaria que mais diretores pensassem assim. Então, talvez o cinema americano não fosse tão ruim. Eu acredito que somos todos responsáveis por nossas ações, e todos nós temos que encarar isso de algum modo. Quando Bush bombardeia o Iraque sou eu quem bombardeia o Iraque, porque ele está fazendo isso em meu nome, com o dinheiro dos meus impostos. Por isso eu tenho o dever, na minha consciência, de me opor a isso.
Em novembro, a W11 Editores lançará A cultura do medo, de Barry Glassner, guru teórico de Moore. A editora ainda pretende trazer o autor para o Brasil entre os dias 11 e 23 de novembro, para o lançamento em algumas cidades brasileiras, bem como para uma palestra a convite da Comissão de Constituição e Justiça, em Brasília.