A barba de Félix Robatto, de repente, não era mais a moldura bem-comportada que só conseguia envelhecê-lo uns dois anos. De repente, o guitarrista do Pará viu seus pelos se rebelarem em direção ao umbigo e saírem dos padrões, ganhando vida própria. Um dia, chamaram Robatto de ZZ Top pela rua sem que ele nem soubesse o que era ZZ Top. Foi pesquisar e gostou da banda de blues rock do Texas liderada por duas barbas e uma guitarra tão selvagens quanto a sua.

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A Belém de Félix Robatto é, antes de tudo, uma festa regada a cerveja. Depois de dar algumas vitórias ao grupo La Pupuña, que criou em 2004 e com o qual tocou nos festivais South by Southwest, nos Estados Unidos, e Wasser Musik de Berlim, na Alemanha, e de produzir o primeiro disco de Gaby Amarantos, Treme, de 2011, ele faz sua estreia em um álbum com a própria foto na capa. Equatorial, Quente e Úmido é o registro de um dos nomes importantes da neo guitarrada, um estudioso que agora quebra algumas formas da linguagem defendida pelo La Pupuña para se movimentar mais em direção ao pop. Antes de tudo, seu disco é para se dançar.

“ZZ Top da Amazônia” soa como uma referência bem-humorada mais ao visual, embora a pegada de Robatto, como guitarrista, cantor e compositor de nove das doze faixas do disco, coloque um peso e alguns riffs que, em geral, a guitarrada não traz. Sua música tem rudimentos dos mestres Vieira, Solano e Manoel Cordeiro e desmembrá-la é entrar no universo de uma escola que o Brasil ainda não catalogou.

Os mistérios da guitarrada começam com o fato de que ela, como ritmo, não existe. “Não há uma batida própria para ela, você não pede para um baterista ‘tocar uma guitarrada’. Eu digo que guitarrada não é um gênero, é um sotaque”, diz Félix Robatto. Ele pesquisou e cursou música na Universidade do Estado do Pará, mas evitou ‘cerebralizar’ seu trabalho. “Gosto de fazer música para ser cantada.”

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Amazônia Big Rave e Eu Quero Cerveja, gravada em português e espanhol, indicam algumas apropriações pop de gêneros amazônicos. Nenhuma poesia em letras como “Não importa onde eu for / Aonde quer que eu esteja / Peço um favor, que não me falte cerveja”, o que o coloca em sintonia com uma cultura que antecede os próprios anos 1980: a de se cantar sem falsas riquezas de linguagem. Em outra das faixas, o merengue Baiuca’s Bar, de uma das forças maiores da música paraense, Paulo André Barata (que tem como parceiro constante seu pai, Ruy Barata) narra o clima de um bordel que cheira a Royal Briar, o perfume popular impregnado nos lençóis de baixo meretrício. Fafá de Belém a gravou em 1978, no disco Banho de Cheiro, cheia de cordas. Agora, Félix Robatto divide vocais com os graves de Paulo André e a preenche com mais guitarras e teclados.

A guitarrada vem das mãos de Mestre Vieira, mais precisamente no disco Lambada das Quebradas, de 1978. Se a lambada como gênero de massa só iria aparecer em meados dos anos 1980, há alguma história aí que precisa ser contada. Vieira, uma referência para Robatto, teve regravada sua faixa Loirinha. Um tema que traz a surf music da guitarra com pedal de reverb (eco) e flashes de Dick Dale, o mestre do gênero. “Eu convidei o Dick para gravar no disco, mas ele não pôde por questões de saúde”, conta. O encontro seria história pura. Sabe-se lá por qual porta a surf music, direto do Sul da Califórnia, dos Beach Boys, entrou na caldeirada paraense.

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Assim como entraram também o calipso feito nas grandes panelas de metal, os steal drums, de Trinidad e Tobago (nada a ver com a estética da também paraense Banda Calypso), a cúmbia da Colômbia e do Peru, o kompá do Haiti e o cadence lypso, mistura de kompá com calipso, da Dominica e da Martinica, que aparece nas faixas Ilha do Marajá e Uma Guitarra e Um Guitarreiro. A ainda lenda, já que não há confirmações documentais, reza que todos eles chegaram pelas emissoras dos radinhos de pilha sintonizados Pará adentro. Mestre Solano se lembra. “Foi quando ouvi calipso pela primeira vez.”

A história escondida no Norte do País tem histórias de reproduções de músicas e de gêneros regionais, sem que ninguém tenha pedido licença, das quais poucos reclamaram autoria até hoje. Robatto fala da Bahia sem rancores. “Os baianos sempre se apropriaram muito bem de ritmos de fora da Bahia. Fizeram isso com o frevo e vários outros, até porque dominam a percussão.” Segundo suas pesquisas, até a Timbalada, de Carlinhos Brown, saiu de uma ou duas vértebras da guitarrada. O grupo mais percussivo da Bahia teria bebido em duas músicas paraenses dos anos 1980 para criar Mulatê do Bundê, que estava em seu primeiro disco, de 93. Apesar do primitivismo rítmico, a semelhança é mesmo impressionante. A primeira parte seria uma extração de Lambada Complicada, registrada por Aldo Sena, e a segunda, algo muito parecido com o refrão da Lambada dos Brasileiros, gravada por Carlos Santos. Mas Santos, que já foi governador do Estado e é conhecido como o “Silvio Santos do Pará”, também registrou em seu nome e de Alípio Martins a música Quero Você, que, na verdade, se trata de uma versão de Jamais Voir Ça, do grupo de Dominica Exile One. Talvez por isso Caetano Veloso cante tanto que o império da lei há de chegar ao coração do Pará.