O melhor da transgressão cafona nacional

Gravada em 1975, a balada convidava: “Venha comigo na minha viagem/ Não se preocupe, eu tenho as passagens”. Nas entrelinhas, falava-se de maconha. Raul Seixas? Rita Lee? Nem um nem outro. O autor e intérprete da canção -que rendeu problemas com a censura do governo militar – é o insuspeito Odair José, ele mesmo, o rei das empregadas nos anos 70. Ao contrário do que se possa pensar, o cantor não foi um transgressor solitário da música brega na época. É o que mostra a coletânea em CD Eu não sou cachorro não – Música popular cafona e ditadura militar (Universal), espécie de trilha sonora para o livro homônimo do pesquisador Paulo Cesar de Araújo, que também selecionou o repertório do disco.

Como o livro, lançado em 2002, o CD é uma aula sobre a mentalidade dos censores e também uma reflexão sobre o preconceito da classe média contra os chamados “cafonas”. E, o que é melhor, é divertidíssimo. Além da porção “legalize” de Odair José, podemos ouvir Agnaldo Timóteo levantar a bandeira do homossexualismo e o histórico encontro de Caetano Veloso com Odair – o autor de “Pare de toma a pílula” foi recebido com uma sonora vaia pela platéia que estava no show Phono 73 para ouvir o fino da MPB.

A tese de Paulo Cesar, desenvolvida no livro, diz que os artistas cafonas foram mais censurados que seus colegas da MPB e o fato de não se saber isso apenas reflete o preconceito com que a crítica e os intelectuais viam a música do povão.

O disco abre com Tortura de amor, de Waldick Soriano, bolero romântico sem outras conotações que teve a execução proibida pelo simples fato de trazer a palavra “tortura” no título. O cantor aparece também com o hino “Eu não sou cachorro não” que, na opinião de Paulo Cesar, não é apenas um grito contra uma rejeição amorosa. Na voz de empregadas, operários e porteiros, ela ganhava o sentido de revolta contra a rejeição social.

O campeão Odair entra no CD com mais três. Viagem, a tal da maconha, foi proibida num primeiro momento. O cantor argumentou, porém, que “a viagem sugerida não fica especificada, podendo, na verdade, significar até uma fantástica viagem cósmica, levada a efeito, evidentemente, pela imaginação”. E os censores acreditaram! Já “Uma vida só (Pare de tomar a pílula)” foi silenciada depois de já ser um sucesso – ela ia contra a campanha oficial de controle de natalidade. E “Vou tirar você desse lugar”, com Caetano sob vaias, dando novo sentido aos versos finais da música.

As minorias também são representadas. Os negros são valorizados em Eu queria ser negro, com Marcus Pitter, cantor louro de olhos verdes. A galeria do amor, com Agnaldo Timóteo, fala da Galeria Alaska, tradicional ponto de encontro gay do Rio.

Completando o painel da época, Benito de Paula (o sambolero Retalhos de cetim), Sidney Magal (a latina Brasileiro no meu calor, que tem entre seus autores Paulo Coelho) fecham a seleção cafona. Um time que, goste-se ou não, deve ser visto por qualquer um que queira entender a música (e a alma) brasileira.

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