Há uma disfunção do corpo que atrai a diretora argentina Lucia Puenzo. Está em XXY, seu primeiro longa, sobre um transgênero que enfrenta os problemas de identidade decorrentes da indefinição sexual. Reaparece em O Menino Peixe e O Médico Alemão, que no original se chama Wakolda e integrou a seleção oficial de Cannes no ano passado, na mostra Un Certain Regard. Lucia é filho do diretor Luiz Puenzo, que ganhou o Oscar de filme estrangeiro por A História Oficial, em 1984. O pai produz, seu irmão (Nicolás Puenzo) fotografa, Lucia dirige.

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A pessoa de XXY busca estabelecer uma identidade. O menino peixe na verdade é uma lenda e o filme trata da ligação homoerótica de duas garotas. Há sempre uma garota entre gêneros, entre diferentes estágios da vida (fazendo o rito de passagem) no cinema de Lucia Puenzo. A de O Médico Alemão não cresceu de acordo com a idade.

Lucia superpõe à história da garota – Lilith é seu nome – outra que talvez seja mais perturbadora. No começo dos anos 1960, agentes do Mossad, o serviço secreto israelense, capturaram Adolf Eichmann na Argentina e levaram o criminoso nazista para ser julgado em Israel.

Lucia Puenzo interessou-se pelo assunto e escreveu um livro inspirado na presença de nazistas no Cone Sul. No livro, como no filme, médico alemão se instala no hotel de uma pequena família, em Bariloche. Pai, mãe e filha, e a garota sofre de nanismo. Certas informações deixam o espectador alerta de que o médico Helmut Gregor pode ser o sinistro dr. Mengele, que fazia experimentos genéticos nos campos nazistas. Dr. Gregor interessa-se por Lilith. Só para lembrar – Mengele já foi retratado na ficção Os Meninos do Brasil, de Ira Levin, que virou filme de Franklin J. Schaffner.

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Boa parte do filme passa-se num território dúbio. O médico justifica sua permanência na região invocando experimentos com animais, mas é a menina que lhe interessa. Ele não se relaciona com ninguém, olha o mundo à sua volta com indiferença, menos a garota, por quem se torna obsessivo. O pai tem um projeto – quer criar a boneca perfeita, dotada de um coração pulsante. A pretexto de produzir as bonecas em série, o médico aprimora a preferida de Lilith, a Wakolda do título. Transforma-a num protótipo ‘nazista’ – loira, linda, de olhos azuis.

Enquanto drama, explorando as relações ambíguas desses personagens, O Médico Alemão é muito bom. Ocorre um fenômeno parecido com o filme francês Antes do Inverno, de Philippe Claudel. Antes do Inverno narra a obsessão dessa garota ‘de fora’, uma marroquina, por casal em crise. Enquanto relato de obsessão, o filme é ótimo, mas enfraquece quando o diretor, que faz literatura (policial), envereda por uma trama de sequestro. A obsessão também é perturbadora em O Médico Alemão. O médico é obsessivo, a garota o olha como seu salvador. A partir do momento em que a verdade se anuncia, há uma fratura do drama. Há sempre esse momento, o da revelação da identidade, no cinema de Lucia Puenzo. Em O Médico Alemão, empurra a diretora para o thriller.

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Não é que o suspense não seja eletrizante e seja canhestro. Ele só parece desviar o filme de um rumo mais intrigante. Alex Brendemühl, que faz Gregor/Mengele, é muito bom. Os próprios nomes compõem charadas. Mengele usava mesmo o nome de fantasia de Helmut. Gregor remete ao personagem de Franz Kafka em Metamorfose. E Lilith, primeira mulher de Adão, aparece como imagem noturna da serpente no judaísmo tradicional. Os nomes não são acidentais e integram o cabedal de referências do filme. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.