Do canadense Denys Arcand esperamos sempre algo meio corrosivo. E criativo. Seus filmes anteriores, “O Declínio do Império Americano”, “Jesus de Montreal”, “As Invasões Bárbaras” e “A Era da Inocência” revelaram um olhar ácido e perturbador sobre a nossa tão cara (nos dois sentidos do termo) civilização ocidental. Em “O Reino da Beleza”, o registro muda. Ou parece mudar.

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Temos aqui um ambiente que, seguindo o título, deslumbra por sua beleza. Filmado em Ontário e no Quebéc, e também em Paris, apresenta um mundo desenhado em linhas equilibradas. Não por acaso, seu protagonista é Luc Sauvageau (Eric Bruneau), um arquiteto de talento. Ele é casado com a bela Stéphanie (Mélanie Thierry) e mora numa casa de cinema, com paisagem deslumbrante, desenhada por seu mestre em arquitetura. Tudo é de um bom gosto que chega a enjoar.

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Quando vai a Paris receber um prêmio por sua carreira, Luc encontra-se com a mulher que foi perturbadora em seu passado, Lindsay (Melanie Merkosky). O filme toma então o caminho do flashback, mostrando o que aconteceu antes e como se chegou àquele ponto.

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Então entendemos a estratégia de Arcand, a de colocar uma espécie de “retrogosto” avinagrado a estragar o gran cru que parece ser a vida de Luc. Como a nota fora de escala num concerto de perfeita harmonia, um raio em céu azul, enfim, algo de inesperado que se passa no interior da perfeição mais acabada. Arcand nos diz que os melhores cristais estão sujeitos a rachaduras. E que estas são inevitáveis.

Percebido esse detalhe, entramos de novo no universo de Arcand, embora de maneira não tão explícita como em filmes anteriores. Nestes, o diretor procurava flagrar o mal-estar instalado entre indivíduos, mesmo em civilizações tidas como as mais desenvolvidas do planeta. Países imbatíveis em quesitos como democracia, combate à corrupção, assistência social, saúde, educação, segurança – tudo isso de que sentimos falta no chamado “3º Mundo”, conhecido hoje pelo eufemismo de “países em desenvolvimento”.

É como se a civilização cobrasse preço alto demais a seus participantes. Nenhuma novidade nisso: o velho Freud já havia detectado essa dissonância numa obra cujo título não deixa margem a dúvidas – “O Mal-Estar na Civilização”, ensaio de 1930, escrito no bode existencial do entreguerras. Para fazer parte do clube civilizatório, reprimimos tanto nossos impulsos naturais que pagamos em neurose e infelicidade o preço da admissão. Os mais fracos funcionam como sintomas desse desajuste estrutural da condição civilizada.

Em suma, Arcand estuda o que vai mal num mundo em que tudo parece ir bem. Não é pouca coisa, mesmo levando-se em conta de que esse filme, nada banal, não chega ao nível dos seus anteriores. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.