Osueco Johan August Strindberg foi um dos tipos originais da literatura universal na virada dos séculos 19 e 20. Mas também, doido de pedra. Basta dizer que era expressionista, uma galera criativa e às vezes bizarra que deu aos movimentos culturais no começo do século passado um toque radical e bárbaro. Mas os expressionistas eram gente estranha, incluindo os antecessores, os pré-expressionistas, como Gauguin, que chutou boa vida e família para ser vagabundo mundo afora e Van Gogh, que num acesso de loucura cortou a própria orelha e deu de presente a uma prostituta chamada Rachel. Que não deve ter achado graça no presente.
Como se vê, os expressionistas tinham a quem puxar. Munch era deprimido e Kirchner ficou louco. Strindberg estava no time certo, na hora certa, fazendo a coisa certa. Um de seus aspectos era a misoginia. Foi um depreciador de mulheres. Tecia gracejos do tipo: ‘Minha primeira mulher era um demônio, mas comparada à segunda, era um anjo’. A primeira com quem viveu por 15 anos, num casamento escandaloso e fracassado, foi a atriz aristocrata Siri von Essen, mulher de seu amigo o barão Gustav Wangler; a segunda, foi a jornalista e escritora austríaca Frida Uhl, com quem viveu quatro anos; ele ainda teve tempo de arrumar uma terceira, a jovem atriz Harriet Bosse. Se não gostava de mulher e casou três vezes, imagine se gostasse.
Era um cara estranho. E bom dramaturgo. Autor de algumas peças essenciais da dramaturgia moderna, como Senhorita Júlia e O Pai. Mas, como era estranho, dramaturgo era apenas uma de suas ocupações. Foi fotógrafo e se achava cientista. Theodor Svedberg, prêmio Nobel, analisou o que Strindberg pesquisou em química e concluiu: ‘Nada do que ele fez de bom era novo e nada do que fez de novo era bom’. Não é um comentário lisonjeiro. Por essas e outras, Strindberg ficou ressentido e caiu fora da Suécia.
Era compreensível a indiferença da comunidade científica. Strindberg queria ser cientista e era ocultista, coisa semelhante a um beque de fazenda entrar para o balé do teatro Guaíra. Não bastasse, estudou medicina e virou pintor. Caiu em Berlim onde encontrou Edward Munch, pintor expressionista e autor do antológico O Grito. Depois, Strindberg foi para Paris.
Foi na transição de Berlim a Paris que Strindberg desenvolveu a mania de perseguição (uma das perseguidoras seria a própria mulher, o que faz sentido) e surtos psicóticos, características que contribuíram para ele escrever Inferno, cuja tradução de Ivo Barroso a editora Hedra relança no Brasil (R$ 25,00, 236 páginas). Inferno é um livro estranho o que não surpreende vindo de um sujeito estranho. Tem relatos autobiográficos, com outros fictícios, resultado dos surtos psicóticos. Também tem pitada de Inferno de Dante e outra de Une Saison en Enfer (Uma temporada no inferno), de Arthur Rimbaud, sucesso em Paris quando Strindberg desceu do trem na estação da capital francesa.
Como Strindberg era estranho, ele escreveu o livro em francês e pediu a um amigo, poeta e médico francês, Marcel Réja, dar uma garibada no texto. Enquanto Réja garibava em francês, Strindberg fez uma versão em sueco, que saiu antes da francesa. Na Suécia, claro. Mas como o mundo prestava atenção à França e Estocolmo ficava longe, a francesa ganhou notoriedade. O que diz o livro? É essencialmente uma narrativa de um cara atormentado, de um sujeito cuja vida virou um inferno. Não é algo tão raro assim, mas ele botou no papel. Ele, claro, Strindberg. É o tipo de relato pouco indicado para quem não gosta de narrativas deprimentes. Há quem jure que aquilo é um retrato de seus dias em Paris, onde o dramaturgo passou dois anos. Há quem diga que a coisa não foi bem assim. Que Strindberg carregou nas tintas e esquentou a temperatura de seu inferno pessoal para o literário ficar mais terrível e do ponto de vista literário, melhor. Vai saber!
A segunda versão faz sentido, mas a primeira procede. É certo que Strindberg chegou a Paris e foi de cara publicando livros e vendo peças encenadas. Isto num universo cultural em ebulição, com centenas de escritores e pintores se estapeando por um lugar ao sol. Senhorita Julia foi apresentada no Théatre-Libre a 16 de janeiro de 1893. No ano seguinte, Os Credores apareceu em 21 de julho com grande sucesso no teatro de L’Oeuvre; O Pai foi encenada a 13 de dezembro. Aurélien Lugné-Poë, um dos renovadores da cena teatral da Paris fin-du-siècle (dirigiu peças de Ibsen, Jarry e Wilde) fez temporada com O Pai pela França. Não deixa de ser reconhecimento. E isto não é ruim. E não faz ninguém infeliz. Mas Strindberg era estranho. E se enfiou no tal inferno.
Quando soube que Strindberg andava esquisito em Paris, Munch se surpreendeu. ‘Ué, que estranho!’. E comentou que em Berlim era bom companheiro, alegre, jovial, até cantava por qualquer coisa. Em sueco, claro. Mas faz sentido. Strindberg era um cara estranho. Ainda em Berlim, encontrou um mendigo que começou a contar sua vida miserável. O escritor ficou impressionado, embora fosse expressionista. Enfiou a mão no bolso, pegou umas moedas de ouro e deu para o mendigo com um conselho: ‘Compre um revólver!’. A frase significava que uma bala na cabeça era melhor que aquela vida. Humor negro ou não, o mendigo pegou as moedas, mas não comprou o revólver. Era mendigo, mas não era estranho.
No período berlinense, Strindberg bebia feito louco. Mas, naquela época, na Alemanha, para agüentar a barra só de cara cheia. Foi aí que Strindberg passou a ter mania de perseguição a ponto de suspeitar de Munch. Em Paris, Marcel Rèja, um dos poucos amigos de Strindberg, disse que o tipo vivia num hotel da rua Saint-Pères e se dedicava quase exclusivamente à literatura – quando saía da rotina era para fazer pesquisa com alquimia. Que é coisa de maluco. Aí passou a ter insônia, gastrite e terrores noturnos. O que não chega a surpreender para quem se mete com alquimia.
Ele entrou numa fase de confusão mental. Além de achar que era perseguido por pessoas normais, começou também a achar que forças superiores estavam em seu encalço. Ele se preocupava porque acreditava que dependendo do humor estas forças poderiam arruinálo, assim como levá-lo aos píncaros da glória. Coisa de sujeito estranho. Se visse criança sentada na rua ou cachorro atravessando o caminho, achava que estava sem sorte. E assim por diante. Com uma rotina destas começou a ter visões alucionatórias. Olhava o lençol amassado na cama e enxergava figuras e fisionomias. Uma noite, ao chegar em casa, viu o demônio ‘em trajes medievais e cabeça de bode’. Pensam que se assustou? Nem deu bola. ‘Aquilo era corriqueiro, apesar da impressão de que algo extraordinário, quase sobrenatural, ter se implantado em minha mente’.
A sorte de Strindberg foi conhecer parte da obra de Swedenborg – teólogo e místico sueco do século 18 – que alguns consideravam charlatão. Swedenborg, que passou experiências semelhantes e as superou, dizia que o inferno, na verdade, não passava de uma imagem paralela a este mundo. Este mundo e o inferno têm a mesma paisagem. O sofrimento e a punição são vividos aqui, bem como a expiação. Para Strindberg a coisa ficou mais clara: céu e inferno podiam ser descritos como paisagens concretas, como cópias de paisagem terrestres e experimentadas pelo autor. Assim como o céu, o inferno nunca esteve muito longe. Pode estar logo ali, na esquina. E pode pegar qualquer um. O que não pode é dar bobeira. Depois de sair do inferno, Strindberg encarou a terceira mulher, Harriet Bosse, um pitéu. E foi em frente. Sem deixar de ser estranho.