Quem não conhece ou pelo menos ouviu falar do filme O Homem Elefante, de David Lynch, lançado em 1980? Ele conta o drama de um jovem rapaz portador de uma terrível doença genética (ainda incurável) que provoca graves deformações dos ossos e tecidos da pele, que depois de passar boa parte da vida se escondendo pela aparência monstruosa, torna-se a principal atração de um circo de horrores.
O filme de Lynch foi baseado na história real de Joseph Merrick, que viveu em Londres de 1862 a 1890. Fascinado pela história, o autor, diretor e produtor teatral Luiz Roberto Meira decidiu produzir um espetáculo autoral – amparado por um longo e cuidadoso processo de pesquisa – sobre a história de Merrick. O resultado de dois anos de trabalho é O Homem Elefante – A História de Joseph Merrick, que estréia hoje às 21h no Guairinha.
Meira esclarece: “Desde que o caso veio a público, foram produzidos diversos livros – o primeiro deles, The Elephant Man and other reminiscences, publicado em 1923 por Frederick Treves, o médico que cuidou do rapaz entre 1884 e 1890 -montagens teatrais e produções cinematográficas em todo o mundo. Mas isso não levou a uma maior e mais confiável divulgação sobre a misteriosa “doença do Homem?”.
Ele conta que pesquisas realizadas no esqueleto de Merrick em 1996 indicam que se tratava da até hoje obscura, Síndrome de Proteus. “No entanto, saber a denominação científica não lança mais luz sobre o assunto, uma vez que pouco se conhece sobre a patologia”, observa, lembrando que a falta de ampla divulgação de informações precisas contribuiu para que o preconceito se perpetuasse nos contatos com pessoas que se igualam na dor e no sofrimento vividos por Merrick e que, como ele, trazem na alma as marcas do estigma imposto por uma sociedade não inclusiva e pouco solidária.
“Tão ou mais urgente e imprescindível quanto a informação confiável é o desenvolvimento na sociedade da capacidade de ver para além das deformidades provocadas pela doença – e cuja evidência incontornável gerou o horror e o sensacionalismo que vitimaram Merrick”, prossegue. “O ser integral que existe em cada pessoa e sua profunda necessidade de ser reconhecido, respeitado, aceito e amado em todos os níveis de sua complexidade existencial, na qual as diferenças e as circunstâncias também são elementos indissociáveis da sua integridade como ser humano”.
Ao conceber o espetáculo, Luiz Roberto Meira quis justamente apresentar o lado humano das relações entre médico e paciente, essecial para a recuperação – ainda que fugaz – da dignidade deste último.
Para levar ao palco uma história fiel ao drama de Merrick, o dramaturgo – autor da trilogia kafkiana O Processo, A Colônia Penal e A Metamorfose – mergulhou no universo do Homem Elefante. Aproveitando o Doutorado em Educação com concentração em Artes da Universidade de Londres, em 2001, durante oito meses Meira recolheu tudo o que pôde sobre Merrick e seu médico, Dr. Treves, incluindo entrevistas com especialistas britânicos e o acesso ao material produzido por pesquisadores do mundo inteiro. O diretor chegou a examinar toda a documentação sobre o caso existente no museu da Escola de Medicina do Hospital de Londres.
De volta ao Brasil, o diretor partiu para a criação do espetáculo. Nova fase da pesquisa foi então realizada ao longo do processo de montagem, cujas concepções cênica e dramática foram sendo construídas simultaneamente e em estreita relação com a construção do texto dramatúrgico (veja box). Nesse processo, diretor e atores se tornaram co-criadores de uma proposta de abordagem teatral da história de Merrick que aprofundasse e ampliasse as questões humanas, sociais e culturais implicadas numa discussão ética da relação entre saúde e doença.
Cidadania
O projeto, portanto, não poderia se resumir à encenação. A temporada de O Homem Elefante (que se estende até o dia 23 de fevereiro) prevê ainda a realização do ciclo paralelo Cultura, Saúde e Cidadania. Cada semana, durante a temporada, reserva a apresentação de uma palestra proferida por profissionais e estudiosos de áreas do conhecimento envolvidas, que abordarão os temas sob aspectos e pontos de vista diferenciados.
A equipe de trabalho da montagem é formada por profissionais reconhecidos na cena artística paranaense, alguns dos quais já tinham participado de O Processo. A idéia é dar continuidade à proposta de Meira de se realizar montagens com atores e técnicos integrantes de diferentes grupos teatrais, de modo que a diversidade de experiências, conceitos, métodos e técnicas na prática teatral permita uma troca criativa entre os artistas e um enriquecimento do trabalho conjunto.
No elenco estão Fernando Bachstein, Enéas Lour, Áldice Lopes, Luiz Carlos Pazello, Gilda Elisa, Claudete Pereira Jorge e Fernanda Machado. A produção é de Luiz Roberto Meira, com incentivo do Banco do Brasil e patrocínio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura.
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Os espetáculos acontecem de quarta a domingo, sempre às 21h, com ingressos a R$ 10 e R$ 5 (meia). Informações sobre o projeto podem ser acessadas pelo site
www.homemelefante.art.brCaracterização de cinema
Dos figurinos à cenografia,da maquiagem à caracterização, da música à iluminação, o espetáculo foi totalmente concebido a partir de uma intensa pesquisa sobre um tempo perdido, passível de ser resgatado apenas pelas vias indiretas das memórias, lembranças, imagens, relatos e objetos.
Através de textos, relatórios, documentos e fotografias que traçam um retrato verossímil de Merrick, Treves e outras personagens daquela época, o diretor e sua equipe técnica realizaram uma ambientação bastante fidedigna da cena vitoriana, que, no entanto, não se pretende um compromisso com o naturalismo.
A caracterização do Homem Elefante é o primeiro elemento a se destacar, já que a sua aparência monstruosa gerou grande parte dos seus problemas e desafios no contato com as pessoas ao longo da vida. A deformidade física de Merrick precisava ser convincente e, para isso, Meira recorreu ao talento da caracterizadora Mona Magalhães, que entre outros cursos de aperfeiçoamento, aprendeu técnicas de maquiagem e efeitos especiais usados em Hollywood, num curso de caracterização em Los Angeles.
Espuma de látex
Mesmo não sendo um material apropriado para o palco em virtude do seu alto custo, Mona optou pela espuma de látex na confecção das próteses e da máscara que o ator Fernando Bachstein usa em cena. “A caracterização foi desenvolvida a partir do material iconográfico disponível sobre Merrick. A espuma de látex permite a reprodução das deformações da cabeça, da mão e do corpo com grande precisão e fidelidade, além de proporcionar um tom muito próximo ao da cor da pele do ator. O efeito final da caracterização no palco, após o acabamento e a maquiagem, causa o impacto desejado pelo diretor”, explica Mona, que também é atriz formada pela Uni-Rio, onde dá aulas de caracterização, além de fazer mestrado em Ciência da Arte na Universidade Federal Fluminense (UFF).