‘O Encalhe dos Trezentos começou às seis horas da manhã ainda escura de 11 de agosto de 1958, no atoleiro do quilômetro 60 da Cianorte-Cruzeiro do Oeste, aquele tempo a estrada mais perebenta do Brasil’.

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É assim que começa um dos melhores trabalhos de Domingos Pellegrini Jr, o conto O Encalhe dos Trezentos, que virou filme dirigido por Denoy de Oliveira.

Pellegrini andou fazendo botox no conto, tirando perebenta e botando ‘mais traiçoeira e mal falada do Brasil’.

O conto é dele, mas comprei a versão antiga. E sou fiel a ela. Prefiro perebenta. O conto em questão fala de um período em que transitava pelo Norte do Paraná um número sem fim de caminhões e ‘cada caminhão tinha chapa de um canto do Brasil’.

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Estes caminhões não estavam lá por acaso. Eles transportavam a principal riqueza nacional naquele tempo, o café, produzido em abundância pela região.

Naquele tempo Londres era ligada na atmosfera de Londrina. Qualquer frio londrinense mudava o humor na city londrina. O bendito café fazia fortuna do Brasil e transformava o Paraná de ano a ano de estado absolutamente insignificante e periférico em outro que se não aproximava das grandes forças, como São Paulo e Rio, dava uma boa encostada em Minas, Rio Grande do Sul, Bahia, ainda fortes, principalmente na política.

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Curitiba não passava de raquítica província nas primeiras décadas do século 20, quintal de maragatos. Com o advento do café no Norte do Estado, deixou de ser raquítica.

Ela passou a ganhar doses maciças de um energético chamado imposto vindo de dezenas de comunidades que nasciam sem parar e produziam sem parar – porque Curitiba não tinha produção agrícola e sua produção industrial era insuficiente para turbinar as transformações custosas que surgiram na capital paranaense, como a construção do centro cívico, entre outras, a partir de 1930.

Domingos Pellegrini é um sujeito forte, bem humorado e eventualmente barbudo, cabelo espesso. Ainda bem que não deixou cabelo crescer demasiadamente e não usa – pelo menos não usava – túnica negra até os pés, porque rosto e túnica o deixariam com a aparência de Grigoriy Yefimovich Rasputin.

Este monge místico e emblemático da Rússia czarista andou seduzindo donas da nobreza e até a czarina Alexandra Fedorovna. Ele alegava que seu membro sexual descomunal tinha poderes curativos. O membro do sujeito era tão grande que depois de Rasputin morrer, tiraram a coisa que hoje se encontra num museu bizarro.

Pelo sim, pelo não, Alexandra gostou. Não tinha efeitos colaterais. Mas tudo acabou numa gandaia mística, sexual e histérica tão grande que a maioria dos historiadores agrega a dissolução moral da família real provocada por Rasputin às causas da revolução de outubro. Pellegrini não tem nada com isso, claro!

Ele tem apenas cara parecida com a de Rasputin e mais outro ponto em comum. Um insuspeito misticismo. O seu conto pode ser lido como metáfora de fundo quase apocalíptico.

Ou o lunático aqui sou eu, que depois de reler o conto, acordei de madrugada balbuciando: ‘O encalhe dos 300! O encalhe dos 300′. Sim, o encalhe dos trezentos. Quem diria, a coisa está ali.

O significado metafísico, metafórico, cabalístico ou que conjunto de ensinamentos ocultistas e filosóficos o sujeito recorrer vai levar a uma conclusão óbvia: o encalhe dos trezentos.

Aí o cidadão, já meio assustado, pensando que tipo de substância alucinógena o escriba aqui andou ingerindo antes de dormir, deve resmungar: ‘Desembucha logo!’. Tudo bem.

O conto de Pellegrini trata do abandono das estradas do interior nos anos 50, quando o interior produzia riquezas sem fim, mas estava longe de receber investimentos suficientes para atender a demanda de seu crescimento, para aquela riqueza traduzir algo que hoje se denomina desenvolvimento auto-sustentável. Ou auto-sustentado.

O que se assistiu principalmente do final dos anos 30 a meados dos anos 60 foi uma ação de rapinagem. De apropriação da riqueza produzida por um lugar sem que esta riqueza necessariamente contribuísse para dar a este lugar uma dinâmica de progresso constante.,

O mesmo processo acometeu as regiões seguintes desbravadas no interior do Estado. O resultado foi uma ocupação festiva seguida de um êxodo sem fim, até hoje. E, claro, empobrecimento. Como minas de ouro abandonadas no Velho Oeste.

Hoje o Paraná tem 399 municípios. Destes, 300 – ou mais – estão encalhados, sem perspectivas além da existência vegetativa. O encalhe dos trezentos foi uma profecia feita através do conto por Pellegrini, e como todas as profecias, ele certamente anotou aquilo em estado de transe sem saber que anotando o presente – ou passado recente -estava dando um recado sobre o futuro.

Até a rica, promissora e altiva Londrina, menina dos olhos de Londres, entrou na rota impensável de estagnação. A bela Curitiba vampiresca se transformou de ano para ano revigorada pela seiva do hinterland.

Foi na direção oposta. De década a década virou rica metrópole -processo em grande parte movido por impostos do interior e de recursos federais advindos de atividade produtiva no interior. De onde mais viria?

A realidade do interior é esta -fundo de quintal desdenhado pela casa bonita. Um desdém que desaparece nas entressafras eleitorais, quando caravanas de interessados e interesseiros pegam o caminho da roça para prometer fantasias que nunca se cumprem.

Porque o interior está encalhado e não é de hoje. E promessas nunca faltaram. Das mirabolantes às mirradas. Basta retornar a 1970 e fazer retrospectiva: o que o interior viu de diferente nos últimos quarenta anos? Nada. Ou quase nada.

As poucas iniciativas ao longo destes anos foram a pavimentação de estradas ligando pequenos municípios – que facilitavam o escoamento da produção e portanto revertia aos cofres públicos – no governo Canet Junior, reprisada no governo Alvaro Dias e a bem sucedida e inovadora política de microbacias desenvolvida nos dois primeiros governos do PMDB, que evitou a transformação das propriedades rurais do interior num interminável canyon, além de economizar fortuna em recursos a fundo perdido para combater as crateras que ameaçavam cidades inteiras.

O resto foi política de abandono e rapinagem fiscal, amenizada por esmolas. Alguns ciclos longos e penosos, como o do governo Lerner, foram quase punitivos – punição pelo interior ser generoso com a capital em sua fase de desbravamento – ou de uma avareza cruel. No final de seu conto, Pellegrini escreve: ‘Aí foram dormir com aquele cansaço que, sabiam, amanheceria esperança, vontade de meter marcha, roncar o motor, sair dali sem olhar para trás, que encalhe na vida é bom esquecer’.

O encalhe dos trezentos caminhões no conto é superado por um sol de estalar mamona. Uma paisagem ridescente. Este sol ainda não apareceu para os trezentos municípios encalhados no interior do Estado e não vejo sinal dele no horizonte. É preciso mais que palavras. Ações. Mas, antes delas, vontade de fazer e não locupletar.

A relação de São Paulo com suas cidades do interior contrasta com a do Paraná com o seu interior. Nossos vizinhos, as evidências abundam, consolidam cidades cada vez mais portentosas: Campinas, Ribeirão Preto, Marília, São José dos Campos, Jundiaí, São Carlos, Bauru, sem contar as que ficam ao redor da capital beneficiadas pelo pólo automotivo como Santo André, São Caetano e São Bernardo. São cidades que correm no asfalto enquanto os principais municípios do Paraná incham encalhados no lamaçal da indiferença e os menores encalham sem inchar.