O cronista da cidade vermelha

No ano de 2002, uma parceria da Secretaria de Cultura de Londrina com a Imprensa Oficial do Paraná resultou na edição de seis livros de cronistas daquela cidade do Norte do Estado. A maioria, inédita em livros. O secretário Bernardo Pelegrini me enviou um exemplar de cada livro, que passei a ler, inicialmente porque se tratava de colegas de redação, com exceção do Lélio César. Um dia destes fechei o livro do Apolo Theodoro (Apologias, Crônicas de Londrina, Imprensa Oficial, 71 paginas, 2002, Londrina), olhei o céu plúmbeo de Curitiba através da janela de minha casa no São Lourenço e pensei: “Por que não escrevo sobre o livro?”.

Bem, não fiz antes porque fiquei bom tempo sem escrever sobre livros e autores. E voltei a fazê-lo meio por acaso. Mas o certo é que de pegar aqui e ali uma crônica do Apolo e ler o livro inteiro, me deu vontade de comentá-lo, apesar de um certo atraso. Por uma razão simples: é um bom livro. Apolo é figura carimbada em Londrina. Ator, cronista, jornalista, professor de História, foi eleito o melhor jogador da Taça Paraná de futebol amador, em 1966, o que a princípio não tem nada a ver com o livro, mas é um título do qual ele ser orgulha.

Eu digo, à princípio, porque, na realidade, as andanças atrás de uma bola, em campos gramados ou empoeirados da várzea londrinense, renderam boas histórias para este observador daquela terra vermelha, desde os tempos de antanho. Casos que ele resgatou quando já engatilhava suas crônicas para os jornais da cidade.

As crônicas do livro recordam as narrativas marotas, presenças obrigatórias nos jornais brasileiros, antes dos anos 70. E que fizeram fama de bons sujeitos como Antônio Maria e Rubem Braga. O estilo, no entanto, tem um sabor João Antônio, um amante dos botecos encardidos e de esportes curiosos. O estilo de Apolo é coloquial que adquire um caráter quase épico, mas sem embromação. O que faz do livro um acontecimento agradável é o molho que o autor dá, um toque de escracho ao narrar o cotidiano, mas com a leveza em permitir que os tipos da cidade fluam sem camisas de força de literatices surradas.

O autor é quase um maestro indiscreto, orientando as palavras, a seu modo. O sujeito está interessado no brilho dos olhos do ouvinte, no caso do leitor. Para conseguir isto, a coisa tem de ter fluência. Que ele consegue. A espontaneidade dá força a narrativa e produz um livro espantosamente simples e gostoso de ler. Talvez porque Apolo faz isto sem intento de ser um escritor. Talvez. Mas o certo é que ele é um bom narrador. Ele sabe contar uma boa história. Elas estão ali na sua memória, frescas, assanhadas, pedindo para sair. E Apolo Theodoro não se faz de rogado, pede apenas que as histórias se ajeitem e então deixa que elas vão dar as suas bandas nas rodas de um botequim, de onde muitas saíram, ou numa folha de papel, para gáudio de quem as ouve ou as lê.

Ele sabe dosar a narrativa com os seus neologismos, surrupiados dos caras que freqüentam os botecos, os campos de bola e com eles envolve os casos com uma verve picaresca. Os tipos são tirados ali, da terra vermelha do norte do Paraná, mas não muito longe de Londrina, que Apolo não é destes de largar a cidade sem mais nem menos. São gente comum, que num fim de semana resolve virar personagem do Apolo, depois de aprontar uma boa num caso que não pode ficar sem ir adiante.

Tipos inesquecíveis

Aquele episódio que está pedindo para ser contado, do tipo: “Você lembra do fulano?”. E quem não se lembra? E as pessoas já se assanham: “O que aconteceu?”. Pronto, a musa dos poetas pode ir tomar umas pingas no bar do lado, que a coisa está sob controle. O resto é com o Apolo. E o caso flui. Um caso para ele é como uma menina, tem que ser jeitoso e fazer com que os caras fiquem com um sorriso largo, imaginando o resto que não foi contado. E o danado consegue.

Os personagens apolinários são parecidos com os tipos felinianos, um pouco surpreendentes e absurdos, mas absolutamente verossímeis. Porque a nossa realidade pode ser absurda, mas ela está aí. Eles ganham vestimenta épica, porque se tornaram involuntariamente inesquecíveis, tipos de uma época imediatamente posterior ao ciclo de riquezas do norte do Paraná e de um período anterior a decadência que se seguiu aos anos 90. É uma época em que os caras que iam jogar bola na Cervejaria Londrina, porque ela existia e lá se tomava duas dúzias de cerveja pelo preço de uma dúzia. Um atrativo irresistível. E num lugar desses aparecem tipos como o Orquídeo, o Comida e cenas impagáveis como a armação do técnico Malheiros, do Quarteirão Futebol Clube, sobre o veterano Valentim. Sacanagens de fim de semana.

A cena é hilariante, quase surrealista: o sujeito chega para jogar com os companheiros. Foi um craque, mas vive de recordações. E em campo quando cisma que foi craque e tenta fazer as coisas que fez no passado, erra na dose e o time se ferra. O técnico prefere manter dez caras em campo, que escalar o Valentem, que espera no banco a sua vez de entrar. O técnico pede paciência e o Valentim ali, no banco de reserva, bravo com os amigos. “Pra frente moçada, até parece que a gente está com um a menos!” E estava.

O jogo termina em zero a zero, uma vitória para o Quarteirão. Só então o Valentim percebe a armação. O time jogou com dez e o deixou no banco. É para ficar contrariado. Mas a contrariedade dá para tirar com a cerveja. E assim as coisas rolavam naqueles fins de semana dos anos 60s, 70s até um pedaço dos 80s, em Londrina. E foi assim que as crônicas do Apolo foram tecidas. E, reunidas, elas se tornaram um livro. Nada mais natural. Um livro que apesar de pequeno, se divide em três partes. A primeira, Cronitutti – crônicas de tudo, são casos amorosos e episódios hilariantes, como a viagem de dois caronas assustados pela Rodovia do Café, no caminhão dum nordestino.

Em Cronibut – crônicas de botequim, é desnecessário dizer do que se trata. E, finalmente, Cronifut – crônicas de futebol, o óbvio aí é ululante. Só o Apolo para reinventar termos de George Orwell em 1984! O mais estranho no Apolo, parodiando o cartunista Jaguar, falando a respeito de Ivan Lessa, é que foi preciso o cara escrever um livro para mostrar que é um bom escritor. Como se já não estivesse na cara há muito tempo!

PS: Quanto ao livro do Lélio César, também andei lendo. Mas o Claret Resende passou na redação, gostou, levou, leu e deve estar embevecido pelo fato de finalmente ter virado um personagem, fugaz, mas nunca efêmero. Vou perguntar para ele se já terminou de ler.

Edilson Pereira

é editor em O Estado. (
edilsonpereira@oestadodoparana.com.br)

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