É uma cidade estranha, com seu rio imitando o Sena, serpenteando ao luar.
Nas suas águas escuras os detritos avançam, casuais, na sua quase irrealidade cor de cobre. Nas margens, passeiam bêbados cambaleantes e prostitutas ingênuas de olhar triste, enquanto, ao longe, em torres invisíveis, sinos incorpóreos dobram. Mas ninguém sabe por quem os sinos dobram.
É uma cidade em cujas vielas estreitas se arrastam os escorpiões do desespero, e em cujos becos os répteis do ódio ensaiam os seus botes. Talvez a urbe estranha seja antípoda da outra, da luminosa metrópole sempre sorridente. Antípoda? Talvez, antes, situada num mundo paralelo, igual aos de Asimov e Bradbury, esses arquitetos mágicos de universos oníricos em outras galáxias. Nas suas avenidas os semáforos estão perpetuamente rubros. Impedindo o trânsito de todas as paixões.
Talvez, quem sabe, ela seja apenas o negativo da outra, a urbe esplêndida que, em outra dimensão, física e temporal, se espreguiça sobre sete colinas, com seus jardins (não suspensos, mas rastejantes), onde desabrocham flores exóticas cujo perfume embriaga. Lá, o amarelo vivo dos ipês atapeta o chão das ruas que desembocam numa bendita Boca Maldita, território livre de todos os fanatismos futebolísticos, arena de toda as discussões éticas, estéticas ou políticas. Arena sem cristãos – só leões.
Na boca bendita falta apenas uma coisa: a estátua, de preferência eqüestre (mas um busto também serve) do Dalvisan Trenton, o autor insigne de “As trombetas da virgem louca” e “Os crimes do tarado”, para citar apenas duas das suas obras-primas, se não irmãs das do portenho Borges, amante de tangos, labirintos, tigres e espelhos.
Contudo, irmãos, é muito diferente a cidade de que ora vos falo, de olhar contrito e mãos cúmplices. Cicerone impassível, é essa a minha missão, o meu degredo. Ei-la que surge à nossa frente, labiríntica, espectral, avatar urbano de Samarcanda. Seus lampiões de gás tremeluzindo dentro da névoa espessa são órbitas de fogo do além, sempre a fitar-nos com seu olhar de esfinge ou de medusa terrível.
Num dos seus bairros periféricos mais imundos, onde o manto das trevas é mais denso, existe um casarão em ruínas, roído vorazmente pelo musgo, silenciosa lepra esverdeada. Foi outrora um palacete faustoso.
Em seus amplos salões iluminados por candelabros feéricos, a vida vicejou e floresceu, intensa, a ilusão rodopiou, alucinada, a beleza cantou todo o seu desejo mortal de imortalidade, a juventude sentiu dentro do peito toda aquela ânsia de superar, de transcender o beijo da Grande Segadora.
O casarão é hoje apenas um fantasma inútil de pedra e solidão, pátria morta de saraus exilados e bailes proscritos, espécie de cadáver disforme, apodrecido, da mansão senhorial perdida, naufragada na distância, no País de antigamente que tem um nome doce: Outrora.
Um confidência que faço apenas a raros visitantes: é habitado o vetusto casarão. Direi simplesmente: é o domicílio do Vampiro, há muitas décadas ou séculos. Trata-se de um sujeito esquisito que também assume, quando assim o quer, a forma de lobo. Ou mesmo de cavalo sem cabeça. Para muitos, pobres incautos, sua existência não passa de ficção, ou de fábula que as mães contam aos filhos impertinentes, para amedrontá-los. Cortariam a língua se soubessem que o vampiro é um ser comum, de carne e osso, terno escuro e gravata negrejante sobre a camisa preta, funérea, melancólica.
Asseguro-vos que ele existe. Solenemente juro: existe. Tão real, tão concreto como esta garoa inclemente que humedece as calvas galopantes e as almas divagantes. Nas noites de Lua cheia, quando o vento varre as folhas das ruas desertas, o vampiro, com movimentos lentos, quase rituais, levanta a lápide do túmulo e, de capa esvoaçante aos ombros, invade a cidade adormecida. Tem os olhos raiados de sangue. Dois dentes brancos, muito brancos, espreitam insolentemente da boca, cicatriz avermelhada. Quando em forma de lobo, seus uivos são punhais nas espáduas dos homens e mulheres visitando o reino de Morfeu. Cavalo, os seus cascos agridem com volúpia o solo do hipódromo da noite, um galope sem fim, que se dissolve com as primeiras claridades da aurora.
O vampiro possui uma faceta insuspeita: é um melômano distinto. Sua discoteca é só de clássicos, a começar pelo trio mais famoso – Bach, Beethoven e Brahms. (Embora em pense que Mozart tem um lugar privativo no trio. O grande problema é este: quem sai? Adiante).
Mais: o vampiro é músico. Compositor. Compõe, de improviso, as mais admiráveis melodias. Apenas uma vez por ano. No primeiro dia de primavera, à meia-noite, ele abre o seu estojo e, com os dedos longos, finos, pálidos, pega o seu precioso “stradivarius”. E toca. Longamente, toca, no pátio do velho casarão, transformado em palco para o recital de um extraordinário “virtuose”. Toca ou canta? É difícil dizer, ao certo.
A música das esferas que o violinista em transe vai compondo tem carícias que alucinam as jovens em seus leitos. As unhas imateriais da sonata, num movimento “moderato cantabile”, arranham a epiderme branca das belas adormecidas.
Findo o concerto, o vampiro entra no casarão e, descendo ao porão ou, quem sabe, às catacumbas, recolhe-se ao esquife clandestino, que fica no fim de um túnel onde as aranhas, minúsculas penélopes insones, vão construindo as suas teias.
E as jovens têm sonhos agitados, povoados de lobos e cavalos, uivos de prata e relinchos de cristal. E de cantos florescendo dos lábios de um príncipe encantado. E as virgens inefáveis, ardendo em febre, estremecem e gemem e deliram, sob lençóis de linho e de cambraia, enquanto a noite grávida de estrelas se espreguia sobre a cidade.
João Manuel Simões
é escritor, membro da Academia Paranaense de Letras.