Sonhava sempre em preto e branco. Hoje, não. Era diferente: seu sonho era colorido. E, coisa curiosa, as cores estavam invertidas. O céu era verde, a paisagem, azul. Caminhava por uma estrada toda branca. Automóveis de cores vivas passavam por ele, céleres e silenciosos. Ao volante, robôs de carne e osso, mãos de alumínio e olhar de aço, dirigiam com a gravidade de um lorde ou de um mordomo inglês. Houve de súbito um som de buzina estridente, apunhalando os tímpanos. Foi nesse preciso instante que ele teve a certeza, até então problemática, de que estava sendo seguido. Ou melhor: perseguido. Ele era a presa inerme de um caçador qualquer, desconhecido. Espreitando da sombra. Na sua mão devia cintilar uma arma letal – faca, adaga, punhal, estilete, sabre, alfanje, gládio, cimitarra? Sabia apenas que era uma arma branca. Sua simples percepção subjetiva já era um cilício na carne frágil. Um cilício ácido, pungente. Correu, fugindo do caçador maldito. Na fuga, encontrou-se de repente numa cidade estranha, de enormes edifícios esféricos. Da cor do ônix, basalto e antracite. Nos arrabaldes, percebeu três pirâmides colossais, os vértices plantados na terra e as bases erguendo-se para o alto, imensas flores negras, triangulares. Pareciam desabrochar simultaneamente no espaço e no tempo. Continuou correndo, como se tivesse asas nos pés, à maneira de um deus Mercúrio humanizado. Aos poucos, enquanto prosseguia a sua maratona, o ar ia parecendo cada vez mais espesso, pastoso. Uma força misteriosa parecia querer imobilizar a sua corrida vertiginosa. Desejou voar. E pelo simples ato de vontade, começou a voar, realmente. Ganhou as alturas, novo condor dos Alpes, ou águia dos Andes (assim mesmo, paradoxalmente assim). E ao fazê-lo sentiu-se antes o albatroz de Baudelaire, mas com asas capazes de desafiar os céus. Olhou para trás. O perseguidor, embuçado, de capa púrpura voava também. Tinha na arquitetura física algo de tigrino e, na face, uma expressão de morcego sub-reptício. Ou, quem sabe, de toupeira alada. Continuou fugindo, com o caçador no seu encalço. Estava agora no meio de uma necrópole imensa, de túmulos de mármore escarlate e cruzes brancas. A rigor, porém, não eram túmulos ou jazigos, mas ratoeiras. As lápides escondiam ratoeiras. Por toda a parte havia ratoeiras implacáveis. Betoneiras de sombra ameaçavam a cada instante devorá-lo, mastigá-lo em suas engrenagens triturantes. Pirilampos nervosos, as estrelas piscavam, melancólicas, engastadas no teto do mundo. Da catedral em ruínas vinha um som de orquestra, de cordas esgarçadas, metais enferrujados e madeiras apodrecidas. Sob a abóbada hexagonal, à luz de um vitral irisado, cantava um coral de meninos de faces muito brancas, cabelos cor de mel. E o seu canto era música das esferas. De novo na estrada branca, constatou que ela era um labirinto. Ou um beco sem saída, crescendo para o alto: inutilmente. A órbita do nada era o cão andaluz de Buñuel, desenhada com volúpia por Picasso: brilhava no fundo de um charco povoado de nenúfares e vitórias-régias plebeias. E havia tigres rastejando sobre o chão, à maneira de ofídeos cor de areia, sob a cornucópia das árvores de estanho. E os seus olhos eram pupilas de sáurios, pavorosamente abertos, sem pálpebras, sorrindo um sorriso terrificante. Por uma fração infinitesimal de tempo julgou-se a salvo do perseguidor. Mas não: lá estava ele de novo, o caçador implacável, camaleão disfarçado nos muros de Jericó. Tocou a sua trombeta de cristal e os muros, como outrora, desmoronaram. Incólume, o caçador gargalhou na penumbra: uma gargalhada de Mefistófeles de arrabalde. E a gargalhada elevou-se, num crescendo, sinistra. Desesperado, continuou fugindo. Um cântico obsceno erguia-se das trevas. Gargantas decepadas cantavam nas masmorras de um castelo gótico, emigrado das margens do Reno, pátria de valquírias em trânsito nos delírios de Wagner. E o canto eram corvos: negrejantes. Na gaiola de cristal, o pássaro cantou: nunca mais! E os mortos anônimos, nos seus túmulos, ecoaram: nunca mais! E os pássaros implumes repetiram também: nunca mais! Mas o caçador inverossímil, com voz terrível, clamou: sempre! E a sua mão brandia a arma, num gesto hierático de liturgia macabra. Num salto, ficou de frente para a sua presa. Fitou-a, com olhar magnético de serpente exilada do éden. A caça quis gritar. Mas antes que gritasse, o aço da arma branca transpassou a sua carne, dolorosamente. Acordou: que pesadelo assustador! E sorriu, liberto: o pesadelo acabara. Lá fora, a manhã era uma promessa de sol infiltrando-se pelas venezianas das janelas do quarto. Respirou fundo, tranqüilo, como que apaziguado. Mas reparou que a porta do quarto começou a abrir-se, sem ruído. Maldição! Lá estava ele, o caçador, expressão malévola no olhar e um punhal – sim, só agora via claramente, era um punhal – na mão direita. O mesmo do sonho, surgindo no mundo real. Desejou gritar, mas o caçador foi mais rápido. O grito estilhaçado manchou de vermelho o lençol de cambraia: sangue. E só então, com expressão de triunfo na face, o caçador sorriu. Com a certeza absoluta de ter destruído mais um infame alter ego, oriundo do país das metáforas. (Lá onde reina, com seu cetro olímpico, Kafka. Não o ficcionista, mas o poeta. Sobretudo o poeta.)

João Manuel Simões é escritor, membro da Academia Paranaense de Letras.

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