Biografia

“O brasileiro voador” é um título ilustre sobre Santos Dumont

Existiram dois sujeitos que receberam e mereceram a alcunha de “brasileiro voador”. Um, como todos sabem, foi Ayrton Senna, piloto de Fórmula 1 que reinventou o amor pela bandeira brasileira, sem recorrer a nenhuma música de Jorge Mautner. Senna morreu de forma trágica – heróis notáveis morrem de forma trágica, fato que os transforma em notáveis – no dia 1.º de maio de 1994, no circuito de San Marino.

O outro foi Alberto Santos Dumont, que não voava rasteiro em Montreal, Monza ou Mônaco, mas no céu de Paris, ao redor da Torre Eiffel. E mais: num tempo em que não tinha avião, por que ele estava lá em cima tratando justamente de inventar os grandes pássaros de ferro.

Santos Dumont é ensinado nas escolas brasileiras como o pai da aviação, embora contestado por americanos que alegam serem dois os pais da aviação: os irmãos Wilbur e Orville Wright. Americanos, por sinal. De qualquer forma, os dois são reconhecidos pela Féderation Aéronautique Internationale e pelos Estados Unidos como os primeiros a projetarem o primeiro avião funcional do mundo. O que não pôs fim à polêmica, porque aqui no Brasil a aviação não tem este negócio de paternidade dupla. Pai é um só e o nome dele é Alberto Santos Dumont.

Como se vê, a vida de Alberto daria um belo romance. O diacho é que ninguém pensou nisso até os anos 80, quando o escritor Márcio Souza resolveu transformar a vida do nosso pai da aviação num folhetim. O escritor amazonense usou as ferramentas que o fizeram famoso. Desde Galvez, o Imperador do Acre, nos anos 70, é dado de barato que Souza tirou a poeira da abandonada coroa de rei do folhetim brasileiro e a colocou na própria cabeça, antes que qualquer aventureiro o fizesse.

Por falta de concorrente à altura continuou sendo não só o rei, como o próprio pai do folhetim moderno no Brasil, com obras posteriores como Boto Tucuxi e este O brasileiro voador, que veio a lume no ano da graça de 1986, por uma editora chamada Marco Zero – nome de livro de Oswald de Andrade – de propriedade do próprio Souza.

O romance, como todo folhetim que se preza, carrega na ironia. Ele foi apresentado como “um romance mais leve que o ar”, numa clara referência ao princípio básico para alguém ficar lá em cima de um lado para o outro sem despencar aqui embaixo na cabeça das pessoas. O romance teve boa acolhida pela crítica e público, mas não passou da primeira edição. Ele levou tão a sério esta coisa de mais leve que o ar que sumiu das livrarias e foi aterrissar, ocasionalmente, em alguns sebos.

E para os curiosos em literatura, história e aviação, acabou virando peça rara. Como um 14 Bis. Que deixou de ser rara porque está sendo relançado (O brasileiro voador, Editora Record, 304 pags, R$ 42,00). Vinte e três anos se passaram e ele está de volta às livrarias, um pouco mais pesado que antes, a edição anterior tinha 263 páginas.

Mas, com a mesma vocação de proporcionar boa leitura para aqueles que desejam conhecer o estilo do escritor. O mesmo humor e refinamento que deslumbrou o país com “Galvez” e divertiu os leitores com “Tucuxi”, a história que faz algumas pessoas se lembrar de um governador do Amazonas que devorava garotas púberes e produziu uma legião de filhos numa desesperada tentativa de povoar a vasta Amazônia. Cada um procura a sua glória, ainda que não seja Menezes.

Além disso, O brasileiro voador é um título ilustre na relativamente escassa bibliografia sobre Santos Dumont e uma rara oportunidade de conhecer um pouco deste pequeno notável que patrocinou eventos no final do século 19 e começo do século 20 às margens do Sena, tão cheios de adrenalina quanto as corridas de Fórmula 1 do outro brasileiro voador, o Senna, oitenta anos depois. Pode-se dizer que em comum os dois “brasileiros voadores” tinham certo magnetismo, sabia,m atrair e encantar multidões e se transformaram em celebridades.

De Senna, nem é preciso dizer. De Alberto, basta procurar jornais e revistas da época para encontrar o miúdo “Petitsantôs” despertando atenção dos parisienses nos parques da cidade com seus inventos. A ponto de se transformar em um dos fotografados por Gaspard-Félix Tournachon, também conhecido por Nadar. Não era nada, não era nada, mas Nadar não era de nadar em qualquer praia.

Ele só fotografava reis, imperadores e celebridades do tipo de Júlio Verne, Édouard Manet, Charles Baudelaire, Alexandre Dumas, Rossini e outros. Além, é claro, da divina Sarah Bernhardt que quebrou a perna no Brasil, na última de suas quatro visitas ao País. Uma vida e tanto levou este Alberto. Ele talvez tenha vivido na melhor Paris de todos os tempos e fez bonito.

Só não foi bonito o fim de sua vida, algo parecido com uma pane no sistema elétrico de uma aeronave: foi despencando, até sumir no mar da mediocridade brasileira, algo que, sinceramente, ele não merecia. E, pior, morreu triste, deprimido, angustiado em saber que o invento que inventou ou ajudou a inventar estava, então, sendo usado na Primeira Guerra Mundial para jogar bombas nas cabeças das pessoas lá embaixo. Por esta ele não esperava. Santa criatividade, hein Santos Dumont! Ele sentia-se culpado pela coisa. E deu um fim na vida, antes que ela própria botasse o ponto final.

Enfim, o livro de Márcio Souza não é uma biografia de Santos Dumont, embora não deixe de ser biográfico. É bom que se diga, antes que o sujeito compre o livro movido por este interesse e ao se deparar com a falta de detalhes eloquentes que fazem a festa de qualquer biografia se enfureça com o vendedor da livraria e em seguida com o presente amanuense – ou vice-versa.

E qual a diferença de uma coisa e outra? A biografia pretende ser – nem sempre é – a reconstituição da vida de uma pessoa, e um livro biográfico de ficção se apóia na vida de alguém, não abrindo mão de uma boa e necessária dose de personagens, diálogos e passagens fictícios, apenas para dar um pouco mais de sabor à narrativa. É algo que na culinária, poderia ser chamado de molho. Ou tempero.

E no caso de O brasileiro voador estamos diante de uma boa obra de ficção, bem temperada, obra literária que tem Alberto Santos Dumont como personagem. A obra gravita ao redor de Alberto Santos Dumont da mesma forma que as mariposas gravitam em torno da lâmpada, como já observava o sábio Adoniran Barbosa olhando o teto de sua saudosa maloca. E só isto já é suficiente para voar em sua direção.

Não podemos esquecer que Santos Dumont conseguiu algo que o homem buscava desde os primórdios, compartilhar o vasto e quase infinito território dos pássaros, algo que custou caro a muitos humanos, como a Ícaro, que voou, deslumbrou e despencou. Alberto, não: ele foi lá em cima, viu, venceu e voltou. Por tudo isso, não é exagero dizer que foi um grande brasileiro, um grande inventor e também um grande ladrão. Numa linha meio poética e meio Notícias Populares, pode-se registrar queixa em qualquer distrito por ele ter roubado o céu dos pássaros.

Afinal de contas, como testemunha Castro Alves, até então, o céu era do condor, como a praça sempre foi do povo. Depois dele, a praça continuou do povo, mas o céu nunca mais foi do condor. Pelo menos, não só do condor. É coisa para deixar qualquer um com dor no coração. Ou com o coração partido. Mas esta tem sido a inexorável marcha da humanidade e Dumont faz parte dela como personagem de destaque. Não é pouca coisa. Merecia um bom romance. E ele foi escrito.

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