A Rede Paranaense de Comunicação passou em março o filme O preço da paz, e quem não viu pode conferir o DVD que está sendo distribuído em escolas e bibliotecas do Estado.

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É um filme concluído em 2003 no Paraná, sobre parte da história do Estado, final do século 19, quando ainda se vivia resquícios da monarquia – e neste caso o Paraná é uma província que se resume a Curitiba e adjacências – e a República engatinha seus passos.

Um barão local com nuances do Barão de Mauá – o Barão do Serro Azul – tenta manter a cidade no caminho do progresso, ignorando injunções políticas. A crise se forma quando o presidente Floriano Peixoto fecha o Congresso na capital federal, o Rio de Janeiro, e o reabre com seus cupinchas no comando.

Naquele tempo este tipo de coisa deixava o brasileiro injuriado e um grupo de revolucionários – os maragatos – insurge no Rio Grande e sobe em direção da capital federal com o objetivo de se juntar ao Almirante Saldanha, para depor o presidente da República, recompondo o que chamam de verdadeiros ideais republicanos.

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Como não havia jeito de chegar lá em cima sem passar pelo Paraná, os revolucionários entram no Estado fazendo estragos. Em Curitiba os negócios vão bem, a província melhora e o barão raciocina que tudo o que a cidade não quer é revolução, revolucionários e saques.

Quando os revolucionários entram na cidade, o barão procura o general Gumercindo, líder dos maragatos – bem interpretado por Lima Duarte – e pede para ele não saquear a cidade e deixar as moças em paz.

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O general se compromete a atender em troca de dinheiro para a sua revolução. O barão convoca amigos e o comércio, paga resgate enquanto os revolucionários bebem, comem e se fartam de mulheres dos bordéis ou não, enquanto para passar o tempo matam os que se opõem a seus ideais ou simpatizam com os pica-paus, fiéis a Floriano Peixoto. Resumindo, não cumprem o que prometeram. Mas é a velha história, a última palavra é de quem tem a arma na mão.

O barão conclui que pagou preço caro pela paz e não recebeu e agora é presa de sua própria fórmula: pagar e não lutar. Quando os pipa-paus leais a Floriano Peixoto se aproximam da cidade, em vez de bela batalha de contornos épicos, assiste-se a uma simples e vexatória retirada dos valentões maragatos, que se entupiram de comida, mortes, mulheres e álcool, nem sempre nesta ordem.

Os pica-paus reconquistam Curitiba sem luta. O barão acha que finalmente vai ter paz e a vida vai de novo entrar nos eixos do progresso e da prosperidade. Engano. O pior está por vir. E vem.

Os leais a Floriano Peixoto consideram traição a hospitalidade do barão aos maragatos e dão início a execuções que terminam com a morte do barão, de seus amigos e de jovens que lutaram contra os maragatos.

Antes de morrer o barão pode concluir que o preço da paz é a morte. Ou que, sem luta, não se conquista a paz, uma vez que a verdadeira paz não passa de troféu obtido nos campos de batalha. É uma lição amarga, mas tardia.

O filme, produção de Maurício Appel, tem roteiro do experiente Walther Negrão, direção cuidadosa e segura de Paulo Morelli e um grupo de atores afinados – Lima Duarte, Herson Capri, Giulia Gam, José de Abreu, Camila Pitanga e Danton Mello.

Eles simplesmente dão conta do recado. Duarte e Abreu impecáveis como revolucionários do Rio Grande, Capri dá vida a um personagem ambíguo, decidido, mas um pouco ingênuo, que é o barão, e Camila exuberante como criada da família do barão. Aliás, a interessante personagem de Camila é quase um esboço para outro filme, embora seja fugaz sua aparição.

A ú,nica incoerência visível no roteiro é o fato de o general fuzilar sumariamente seus dois filhos – um deles adotivo – depois de uma tentativa de estupro a duas moças perto da Lapa e uma vez em Curitiba permitir que a tropa faça o mesmo sem punição às donzelas locais.

Ao contrário, uma das razões para bater em retirado é o fato de seus soldados terem ficado frouxos “de tanto dormir com estas polacas”. Não dá para entender. Mas é um detalhe que não chega a comprometer o filme e, além disso, o general não é o primeiro revolucionário incoerente na história das revoluções. Um bom revolucionário, normalmente é incoerente.

Quanto ao filme, as locações rurais foram bem escolhidas, as cenas de batalhas não envergonham e a reconstituição urbana se encaixa sem vexame. Em resumo, o filme é isto: um bom filme.

Que o crítico Rubens Ewald Filho definiu como “um épico histórico como poucos no cinema brasileiro”. Faltou acrescentar que o Brasil é pobre, ou miserável, em filmes épicos. Mas tudo bem. O fato é que o filme também serve de rara narrativa visual da história do Paraná.

Claro que um filme não é só um filme. Ele sempre arrasta outras questões, como um cometa. Neste caso, embora seja um épico, ainda que sem a suntuosidade que cercam estas produções, ele ignora certos elementos de um filme comercial. E embora apresente um personagem com formato de anti-herói, não é o tipo de filme que em linhas gerais se convencionou chamar de filme de arte.

Um filme comercial cativa o grande público sem vergonha de alterar a realidade histórica e incluir inexistente romance tumultuado e com desfecho feliz, embora em alguns casos as lágrimas finais proporcionem bons lucros. O filme de Morelli se assenta em pesquisa de Tulio Vargas.

A estética resvala no gênero minissérie da Globo, mas emerge intacta por força de uma fotografia impecável. O seu grande trunfo talvez seja transitar entre três gêneros – comercial, filme de arte e estética Globo – e sair do outro lado honesto e digno. Podia ser melhor, claro. Mas a maioria destas produções acaba sendo pior.

E de lambuja, o filme coloca outras duas questões. A primeira de caráter antropológico sugere que a natureza arredia do curitibano – avesso a estranhos – pode ser resultado da circunstância geográfica ingrata, cidade perdida entre o Rio Grande dos inquietos gaúchos e São Paulo e Rio de Janeiro, centro dos poderes político e financeiro.

Desde os primórdios, um lugar de passagem de tropeiros e revolucionários – e os do filme não foram os únicos. Chega uma hora que este trânsito incomoda, até porque esta gente atrapalha a rotina dos pacatos curitibanos.

Outra questão que o filme -mais que o filme, a produção de Appel – escancara é a evidente importância do cinema para reforçar a identidade cultural de um povo. Quando se vê um filme, no caso de um filme histórico, os antepassados se materializam por um momento e a presença deles nos conduz a uma quase imediata reflexão sobre a nossa própria realidade.

O brasileiro perde a conta de quantas centenas de filme viu sobre o oeste americano, e não conta nos dedos da mão direita filmes sobre o processo de ocupação do interior do País – ou no caso paranaense, da ocupação épica do norte, oeste e sudoeste, sem contar, claro, os primórdios do sul.

E não é por falta de argumentos que possam redundar numa boa história, para ficar apenas nos enredos históricos: o Contestado não teve filme digno de sua importância, o mesmo ocorrendo com os conflitos rurais de Porecatu e do sudoeste, entre outros.

O melhor filme sobre as Missões continua sendo o de Riddley Scott, um americano, e por aí a coisa vai. Temos história, não temos cinema. Tudo fica no limbo não apenas por falta de uma indústria cinematográfica, algo complexo, mas por ausência de um polo de cinema, que já frutifica no Rio Grande do Sul, Pernambuco e Ceará.

Assim, o cinema do Paraná – se é que se pode usar este nome – fica à mercê de incursões raras e isoladas. Um filme como O preço da paz tem o mérito adicional de sugerir que é possível fazer ,cinema no Estado. E mais, a responsabilidade maior cabe aos homens públicos, porque gerenciam grandes financiadoras de cultura.

E se tirarem a bunda da cadeira e jogarem arrogância e prepotência na lata do lixo, talvez façam algo pela cultura do Estado. O filme de Morelli ensina, finalmente, aos paranaenses uma dura lição: sem ação, o que nos espera é a morte inglória.