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O arquivo da MTV

Quarenta mil fitas guardam duas décadas da história da MTV Brasil, emissora que transmitiu – e criou – alguns dos momentos mais importantes da TV, da música e do humor no País. Hoje, não é possível consultá-las. Armazenado no antigo prédio da MTV Brasil, na Avenida Professor Alfonso Bovero, 52, o acervo ainda não foi integralmente digitalizado e não tem visitação aberta ao público. Os registros da emissora disponíveis na internet são gravações caseiras, de fãs, com baixa qualidade de som e imagem.

Mas o acervo ganha, agora, novos planos. A Abril, dona do conteúdo, conduz estudos para mudança de local, digitalização dos arquivos e atendimento ao público. O futuro do acervo da MTV começará a ser desenhado após a homologação do plano de recuperação judicial da empresa, aprovado na terça-feira, 27 de agosto. Ao jornal O Estado de S. Paulo, a empresa adiantou ter interesse em utilizar o acervo, “importante para contar a história da MTV e de diversos personagens brasileiros”. A Abril informa que contará com parcerias para tornar a ideia realidade, já que investimentos serão necessários.

Importância cultural. A MTV Brasil tem dois momentos distintos. Entre 1990 e 2013, a ‘antiga MTV’ tinha como carro-chefe a música e os videoclipes, transmitindo também programas de humor e comportamento. Era uma TV jovem, ‘anárquica’, com muito conteúdo próprio e que frequentemente apostava no ao vivo. Em 2014, a MTV Brasil voltou a pertencer unicamente ao conglomerado Viacom, dono da MTV americana. A programação ainda inclui alguns programas voltados aos videoclipes, mas é preenchida principalmente por reality shows nos moldes americanos, como De Férias com o Ex (que tem uma versão nacional) e Geordie’s Shore.

O acervo da ‘antiga MTV’ compreende o primeiro período. Naquela época, a emissora conseguia reunir os nomes mais importantes da música brasileira em projetos como o Acústico MTV e premiações como o VMB. O CD mais vendido de Cássia Eller, por exemplo, foi gravado em um acústico da emissora.

Feita de jovens para jovens, a programação da MTV ousava em cenários, roteiro e figurino e abordava temas-tabu, como sexo, HIV e drogas. “Quando eu olho para trás, no que foi feito na MTV, vejo que tudo era inovação, mas a gente não usava essa palavra”, afirma o ex-diretor de conteúdo da emissora, Zico Goes. “Para nós, tudo aquilo era natural. A gente achava que tinha que fazer daquele jeito e, por acaso, esse jeito era inovador.”

A emissora era claramente voltada a um nicho. “A MTV, no começo, não era bem entendida, era muito maluca”, conta Zico. “Era gente jovem fazendo algo que rompia o que era estabelecido na televisão, de um jeito muito orgânico, a ponto de, às vezes, perder dinheiro e audiência.”

Ex-VJ da MTV, Marina Person afirma que a programação se destacava pela honestidade. “Era uma conversa de igual para igual, diferentemente de outros canais, que faziam TV para jovens pensada por adultos”, afirma. “Com a gente, tudo era muito espontâneo. A gente errava, falava palavrão, falava coisa que não podia falar na TV.”

Em 2004, a MTV transmitiu um momento inesquecível. Caetano Veloso e David Byrne se apresentavam no prêmio VMB, da emissora, e tiveram problemas com o som. Enfurecido, Caetano soltou ao vivo: “Ô pessoal da Emetevê, vergonha na cara! Vamo começar de novo e bota essa porra pra funcionar!”.

“Usamos aquilo à exaustão”, conta Marina. “A bronca merecida do Caetano virou vinheta, promo, chamada, nome de livro… e esse espírito fazia a MTV ser o que era”, recorda. “A MTV conseguia tirar sarro de si mesma, fazer autocrítica. E a gente tinha liberdade total. Nunca ninguém me disse ‘não faça isso’. Ao contrário, meus chefes eram mais loucos do que eu.”

O legado para o humor. A comédia televisiva também ganhou um impulso fundamental da MTV. Em 1999, a emissora transmitiu pela primeira vez o programa Hermes e Renato. Com produção ‘simples’ e humor trash, Marco Antônio Alves, Fausto Fanti, Adriano Pereira, Felipe Torres, Bruno Sutter e posteriormente Gil Brother colocaram no ar programas que, até hoje, inspiram humoristas.

“Antes de trabalhar na MTV, eu era audiência da MTV”, afirma o humorista Felipe Torres, que deu vida, entre outros, ao personagem Boça. “Nós do grupo sempre acompanhamos o canal com suas novas referências. A gente buscava coisas ali, não tinha Google, YouTube nem internet discada nessa época.”

Para ele, a importância da MTV na cultura brasileira é impossível de ser medida. “As pessoas não têm noção de que nós, Penélope, Cazé, João Gordo, Thunderbird, Adnet, Tatá Werneck… todas essas pessoas que vieram da MTV, tiveram muita importância na formação cultural e de entretenimento do Brasil nos últimos anos”, informa. O humorista destaca o caráter libertário da emissora como seu maior legado.

Digitalização

Hoje, 95% do acervo da MTV já está catalogado – passo fundamental para a digitalização. Mas, de acordo com fontes ouvidas pela reportagem, cerca de 10% do material teria de fato passado pelo processo.

Ex-VJ da MTV, Sarah Oliveira conta ter dificuldades para recuperar programas que gravou na emissora. Ela relembra momentos importantes que aconteceram em frente das câmeras da MTV: “Fiz um especial com o Michael Stipe, do R.E.M, sobre educação sexual, em uma época em que o (ex-presidente dos Estados Unidos, George) Bush estava proibindo essa discussão nas escolas”, conta. “Ele falou abertamente sobre a homossexualidade dele, de uma forma muito natural e bonita, foi um momento importante da MTV.”

Sarah também destaca o último registro de Cássia Eller em vida, gravado com ela, e versões inéditas de músicas no VMB. “Às vezes alguém posta uma foto, um vídeo, e me marca”, conta. “Mas é muito pouco perto de todo o conteúdo que produzimos.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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