O Arcabuz da Miséria

A Guerra Civil Brasileira em Romance

O Arcabuz da Miséria foi um mendigo famoso. Fiz dele um mistério para que fosse desvendado com o Brasil. Em ficção (a minha), foi antes um nobre, tornou-se militar e, enlouquecido na guerra, um pária. Envolvi-o já na proposição da narrativa ao sugerir a evolução da história pela força do coração do homem. Ao compreenderem, Ignácio de Loyola Brandão e Deonísio da Silva afirmaram “que o leitor tem diante de si um escritor interessado em decifrar o Brasil, em narrar outra história”. Em simpósio cultural o primeiro declarou que “Arcabuzes” deveria causar impacto nacional.

Precederam a Grande Guerra Mundial de 1.914 as três mais importantes revoluções do mundo ocidental, em conseqüência da ascensão da burguesia: a francesa, a americana e a brasileira. Apenas esta ignorada, omitida em nosso próprio País. Seus marcos decisivos foram abolição e República Federativa. As características próprias e tantos episódios para se compreender precisavam ser reunidos em romance. Durante anos a reação das velhas estruturas semifeudais, monárquicas, constituiu-se numa contra-revolução e originou a guerra civil. Dividira-se a Nação, as classes urbanas pendendo para a proclamada República e seu governo; as do campo, anárquicas e contrárias. Revoltaram-se a Armada Imperial, facção abrasonada do Exército, oligarquias e caudilhos do antigo regime. Na Guanabara, nos mares e nos estados do Sul ocorreram memoráveis batalhas que não podem ser olvidadas. Para revelar o acontecimento deturpado pelos escribas interpretei-o e esclareci a Pátria. Assim o fiz. Era necessário mostrar o verdadeiro papel, até então encoberto, desempenhado no País por personagens reais, ficcionalizados ou não. Pude desvelar o poderoso sentimento humanista de brasilidade. Suscita o pensamento brasileiro em que procuro inovar conceitos como de crime e dolo. Pois o romance tinha de ser de realismo e de idéias. Tive de dividi-lo em dois momentos. No primeiro . vi como pessoa o homem, evidenciando suas relações primordiais. Distingui como um ciclo complementar o tropeirismo a semear e ligar povoações, antecedendo ou durante o ciclo do mate. Ao criar personagens e ficcionalizando os reais(l), ressaltei-os como fautores típicos dos sucessos. Tio Silva, por exemplo, é símbolo do Brasil. Vi plêiades generosas humanizando e conduzindo o mundo. Numa delas lá estava o Arcabuz da Miséria, Xandô, Estácio, Tio Silva, Bento, em meio a outros. Até o final da primeira parte, com a Proclamação e as reações conspiratórias, expus o “estado de espírito” que levaria “a guerra. No segundo momento, o objetivo foi dar predominância ao épico, exaltando o heróico, o verdadeiro, verberando o trágico, o desvario coletivo. Com a abundância de personagens em cena sobressai o coletivo, a concentração principal passar a ser no drama da Pátria. Não se confunda romance histórico com romance de época. Neste, a história é um desgastado pano de fundo; naquele o conteúdo é, por força da história, variável e muito mais rico, abrangente, dispensando o corriqueiro e as costumeiras expectativas ou cenas de erotismo.

Entenda-se que a reação foi falsa e antifederalista, contra o regime, seu governo, e de intuitos restauradores, até mesmo separatistas.

Na Lapa, moradores cediam as casas aos maragatos para atacarem de surpresa as trincheiras abertas pelos pica-paus. Na casa de Chico Braga, antigo prefeito, reuniam-se às ocultas com os chefes das tropas que cercavam a localidade. Autores encobrem fatos como o sumiço do diário secreto do general Carneiro, e outros atos como os de apoio aos rebeldes por ilustres personalidades de casacas viradas. Mentem quando afirmam que Chico Braga foi fuzilado por engano, juntamente com o correligionário Venâncio nos muros do cemitério de Curitiba, como se houvesse sido confundido com Antônio Ferreira Braga que assumira precariamente o governo durante a ocupação da cidade pelos rebeldes.

Há, como sempre, personagens equivocados que se envolvem em lutas fratricidas. No final, evidencio a ação de uma plêiade feminina, apelando à boa vontade, com a qual se alcança a paz.

Para João Manoel Simões “trata-se Arcabuzes do mais importante romance jamais publicado por um paranaense. Rui Cavalin Pinto observa: “Em geral a história acaba por preponderar sobre a estória”. Diz “para Noel a medalha da história está no amor e no sentimento de justiça. Quem move a História, diz ele, são somente os bons e humildes. Noel é devoto do homem-povo como força geratriz da história.”

Wilson Martins assegura: “Noel Nascimento escreveu outro romance paradigmático sobre uma das nossas traumáticas, sangüinárias e inúteis tragédias nacionais, a Revolução Federalista de l893,que iniciada na capital da República e no Rio Grande do Sul, acabou tendo no Paraná os seus momentos climáticos e irreparáveis. É uma história “Shakespeariana, cheia de ruído e furor”, cabendo, no caso, três cidades paranaenses (Ponta Grossa, Curitiba, Lapa), com os episódios subsidiários e complementares do Rio de Janeiro. Não incorporou perfeitamente as peripécias romanescas na trama dos episódios históricos (ou o contrário) mas, ainda assim, num livro muito bem escrito, tem a originalidade de incluir as cidades(Ponta Grossa, com suas histórias tenebrosas de província, Curitiba, centro de desvairados desdobramentos, e a Lapa, com o famosos cerco em que, afinal de contas, se decidiram os destinos da revolução. (2)

Aqueles pouco interessados em história, sua filosofia e veracidade, estranham a passagem ao segundo momento do romance, ao preponderar o épico e o drama de pátria, senão a tragédia. Elucidam-se os mistérios que envolviam o Brasil e O Arcabuz da Miséria.

Miguel Sanches Neto, não menos extraordinário crítico, me disse em carta: “No início do romance avulta a figura do narrador, as histórias são saborosas, sentimos a presença dos personagens, que vivem diante do leitor. É a parte mais rica da narrativa que ficará gravada em minha memória. Li entusiasmado esta pré-história de Ponta Grossa, com suas peculiaridades e seus elementos típicos. Não concordo que a visão particularizada dos dramas humanos se sobreponha uma supravisão, a do historiador, que quer dar conta de todo um complexo histórico.” Surpreendeu-me ao afirmar que “Orestes, como é apresentado no final do romance, seria uma figura rica para explorar ou contar condições da guerra fratricida, a partir de um enfoque mais concentrado em trajetórias individuais.”

Não há de ver que, arguto crítico, a par da realidade dos fatos, deparou-se com o próprio Arcabuz da Miséria?!

1) Barão do Serro Azul, Vicente Machado, Menezes Dória e outros.

2) Foi contra-revolução.

O romance Arcabuzes, prêmio nacional, foi publicado integralmente pelo O Estado do Paraná.

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