O ano de 2009 não foi fácil: a alemã Pina Bausch (1940- 2009) e o americano Merce Cunningham (1919-2009), respectivamente em 30 de junho e 26 de julho, morriam, abrindo uma cratera que, uma década depois, ainda não foi fechada. O sepultamento de dois dos maiores coreógrafos da história traz ênfase a uma das principais questões da dança: como lidar com o repertório de grandes mestres depois do adeus?
A primeira constatação é que tanto Pina quanto Cunningham não formaram coreógrafos e isso desenha a situação de cada uma das cias que carregam os seus nomes.
Merce Cunningham, que completaria o centenário em abril, em seu testamento, determinou que a Merce Cunningham Dance Company continuasse por apenas dois anos após sua morte. A sua escolha foi resultado da consciência da dificuldade de uma continuidade coerente, como explica, em entrevista, a bailarina Gícia Amorin, única brasileira habilitada e formada pela técnica Cunningham: “Foi muito sábia a posição dele, porque se outra pessoa fosse coreografar, seria outro coreógrafo e não mais Cunningham. Não faria sentido. Era o pensamento dele”.
Merce ainda teve o cuidado de preparar a última turnê mundial com trabalhos que mostravam etapas de sua trajetória como criador. “Foi uma despedida e uma retrospectiva de tudo o que ele tinha feito”, diz Gícia. A temporada terminou em Nova York, sede da cia, em dezembro de 2011.
Já Pina, inclusive pela rapidez de sua morte, não estipulou o modo como gostaria que a sua obra fosse tratada. “Foi como andar no escuro. Você está aberto ao novo, porque é a única chance de continuar. A Pina tinha uma riqueza de visões e, por isso, não havia e não há um pensamento único possível sobre a continuidade; e isso não ajudou na hora de escolher a direção”, conta, em entrevista ao Estado, Ruth Amarante, brasileira, bailarina e diretora de ensaio, na cia desde 1991.
Em termos de mudança, para Ruth, se transformar em uma cia de repertório foi a mais significativa. Depois de algumas crises, Adolphe Binder, a 4ª diretora à frente da cia desde a morte de Pina, decidiu incluir obras de outros coreógrafos no repertório. Mas, na esteira da crise, Binder foi demitida. “O décimo ano culminou em uma grande crise, com a demissão da diretora de uma forma que ainda está sendo esclarecida. Muitas coisas, os bailarinos só ficamos sabendo pela imprensa. Estamos, desde então, em um trabalho de esclarecimento”, explica Ruth. A 5ª equipe diretiva com Bettina Wagner-Bergelt e Roger Christmann começou em janeiro, mantendo em temporada mundial as coreografias de Pina.
“Estranho ter em mãos um repertório cheio de peso e valor, uma coisa que a gente continua a colocar no palco com bastante qualidade, mas, internamente, uma coisa bem frágil, em termos de estrutura, de organização, de política. Existe, claro, a saudade da pessoa Pina, mas tem a saudade da coisa que funcionava e não está funcionando mais”, afirma Ruth.
Uma questão importante é o acesso ao repertório. No caso de Cunningham, mesmo diante da sua decisão, outras cias continuam remontando suas obras. Ainda que sob o olhar de bailarinos com anos de experiência com o coreógrafo, essas remontagens acontecem com cada vez menos rigor. “É importante manter o legado vivo, mas claro que há uma perda de rigor, sim. São pessoas muito próximas, que dançaram com ele, que remontam. Mas cada pessoa vai ter o seu olhar”, expõe Gícia.
Também é uma questão que se impõe à Wuppertal Tanztheater Pina Bausch: “Nos últimos 10 anos, a quantidade de público formado, que pôde vivenciar a obra ao vivo é enorme. Mas, claro, a cada ano é preciso pensar se continua valendo a pena. É uma questão que a gente sempre põe à prova”, diz Ruth.
Aos olhares atentos às transformações que os repertórios têm sofrido, mesmo diante dos diferentes destinos, determinado e não determinado pelos autores, a perda da precisão coreográfica não é apenas um detalhe. O que fica em jogo é a sustentação da dramaturgia que atravessou as obras, questionando, justamente, o que permanece em cena.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.