A tragédia de Antígona, filha de Édipo punida pelo rei Creonte por desobedecer a um decreto governamental, já foi interpretada no passado como uma alegoria política da rebelião individual contra o arbítrio do Estado – e o exemplo mais vigoroso dessa versão é o ‘aggiornamento’ feito pelo dramaturgo francês Jean Anouilh (1910-1987). Sua Antígona, recriação moderna da tragédia de Sófocles, foi um símbolo da resistência ao poder do colaboracionista marechal Pétain em plena Ocupação da França pelos nazistas. Ela volta agora a representar papel semelhante numa série de desenhos que leva seu nome assinada pelo artista multidisciplinar paulistano Nuno Ramos em sua exposição Sol a Pino, que a Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel mantém em cartaz até 18 de maio.

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Na mostra, Nuno Ramos apresenta também sua mais recente série de pinturas, renovando o compromisso com a técnica pela qual foi revelado, nos anos 1980, como um dos integrantes do histórico grupo Casa 7, ateliê formado por cinco artistas na época alinhados com o neoexpressionismo. São trabalhos pesados (mais de 250 quilos cada um), feitos em encáustica (mistura de tinta a óleo com parafina, vaselina e pó) e que agregam diversos materiais (tecidos, placas de cobre, alumínio). Ao contrário dos desenhos da série Antígona, as pinturas resistem à alegoria política, embora resultem de um mesmo desejo: o da solarização, da iluminação em tempos sombrios – daí o título Sol a Pino, que, segundo Nuno, pretende “espantar o baixo astral em que o País se encontra”.

Esse ‘sol a pino’, a 90 graus do horizonte, pode cegar qualquer observador – e a pintura monocromática do venezuelano Reverón (1889-1954) foi, nesse sentido, um testemunho da “impossibilidade” da pintura nos trópicos. Mas, no caso de Nuno Ramos, em oposição a Reverón, sua pintura revela novas cores e uma vontade de transfiguração da matéria inerte em uma força viva, desafiadora. Feitas no chão, à maneira de Pollock, essas pinturas têm algo do anel de Moebius, obrigando Nuno Ramos a buscar nesse trabalho reversível, que volta ao passado, um novo ponto de partida. Essa busca, aliás, é o tema inicial do livro Verifique Se o Mesmo, que será lançado hoje, 16, na livraria Tapera Taperá, pelo também poeta, escritor e agora dramaturgo – em setembro, ele apresenta o espetáculo On Human Nature no Festival de Música de Frankfurt, que dramatiza um diálogo entre Foucault e Chomsky com música do grego Iannis Xenákis (1922-2001).

Em seu novo livro de ensaios, Nuno Ramos elege como ideia central o ‘ciclo-labirinto’ de Moebius como “marca cultural brasileira”. Lygia Clark cortando com uma tesoura um anel de Moebius (na obra Caminhando, de 1963), fita em que verso e reverso são intercambiáveis, seria uma possível ilustração dessa vontade de colocar no mundo uma obra sem moldura mas que, paradoxalmente, não supera “o impulso de interiorização” dos artistas contemporâneos – e ele cita inúmeros exemplos, de Hélio Oiticica a Mira Schendel, passando por Lygia Clark, que suprimiu a moldura para transformar a tela numa extensão desse mundo real. No caso da série Sol a Pino, esse circuito nunca é interrompido. Nada é representação, tudo é concreto. Ele revela, aliás, que seu desejo de afirmar a pintura passa pela observação do pós-impressionista Van Gogh. “Ele não pinta a representação da cadeira, mas torna sua presença real”, diz, referindo-se à densa camada de tinta de suas telas, também sua marca registrada.

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Os desenhos da série Antígona, lembra o artista, levam igualmente para o papel a matéria do mundo, dispersando-a na superfície: o pó de grafite espalhado sobre ela evoca o sepultamento proibido do irmão morto da trágica heroína, Polinices. Fragmentos de figuras humanas e coroas são soterrados sob esse pó, cujos vestígios são subtraídos por Nuno numa alusão à primeira parte da peça de Sófocles, quando um guarda avisa Creonte que o corpo de Polinices havia recebido uma camada de pó, o que caracterizaria um desrespeito a seu édito (na Grécia antiga, era dever das mulheres enterrar o corpo dos familiares e Antígona violaria a lei dos deuses se não o fizesse). Ao usar o grafite como substituto do ritual fúnebre, a poética de Nuno revela a mesma tenacidade de Antígona, prestando reverência aos mortos em batalhas contra o poder arbitrário do Estado, o que, aliás, já fez no passado com sua instalação 111, que denunciou o massacre de presos no Carandiru, em 1992.

Um dos ensaios de seu livro Verifique Se o Mesmo, Suspeito que Estamos, trata justamente desse desprezo pela vida na sociedade brasileira. É um pouco o resumo da ópera. Mas ainda há esperança. Um exemplo: as fotografias dos índios ianomâmi de Claudia Andujar no IMS (exposição encerrada). “Fiquei simplesmente impactado.”

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As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.