Nelson Pereira dos Santos jura que não quis debochar da Academia Brasileira de Letras, na qual acaba de ingressar, para ocupar a cadeira que foi originalmente de Castro Alves. Todos os personagens de "Brasília 18%", o novo longa do diretor, que acaba de estrear, têm nomes de escritores. O protagonista, interpretado por Carlos Alberto Riccelli, é um legista radicado em Los Angeles e é chamado à Capital Federal para elucidar um caso de assassinato político que envolve altos figurões da República.
Nelson, como sempre, gosta de dar nomes aos personagens logo na primeira escritura do roteiro. Colocou Olavo Bilac no personagem principal e os outros foram todos surgindo com nomes de escritores. Num filme sobre a corrupção e a decadência da política (ou dos políticos), ele achou que seria interessante chamar, por exemplo, de Machado de Assis um analfabeto que não sabe redigir os próprios discursos. Para evitar constrangimentos Nelson levou o roteiro a seus colegas acadêmicos. Eles não se sentiram melindrados nem acham que o Congresso corrupto, com nomes de autores que fizeram a história da literatura no País, vá respingar na Academia Brasileira de Letras.
"Brasília 18%" começou a nascer há mais de dez anos, quando Nelson montava "A Terceira Margem do Rio". Ele estava hospedado em frente à Casa da Dinda. Fernando Collor de Mello já estava em desgraça, mas persistia o cerimonial do poder em torno dele. Nelson começou a divagar. Achou que aquilo dava filme. No primeiro rascunho do roteiro, Olavo Bilac era um investigador às voltas com aquele corpo de mulher assassinada. Nelson começou a desenvolver uma trama meio "Laura", baseada no clássico noir de Otto Preminger. O policial virou legista, mas o fascínio da mulher morta que pode estar viva persistiu no roteiro. Nada é definitivo nem perfeitamente esclarecido nesse roteiro.
Realidade, fantasia, alucinação, mortos que caminham. Olavo Bilac vai para a cama com quem? Com a garota que teria sido assassinada e voltou ou com a prostituta jovem? "Queria que as coisas ficassem assim, ambíguas. Nada é muito certo em "Brasília 18%"." É um partido arriscado do diretor e que está desconcertando as platéias. Os críticos estão perplexos. O filme é elegante, os ambientes são cuidados, os atores é que não estão muito bem. Riccelli, por exemplo. Nelson discorda. Acha que ele está ótimo. E quanto ao desconcerto, fazer o quê? Foi assim que ele imaginou seu filme.
"O filme é produto da minha indignação. É minha contribuição para se tentar entender esse momento de crise." Ele poderia ter feito uma tragédia. Fez uma comédia de erros e a comédia, você sabe, não é o forte do diretor de "Vidas Secas" e "Memórias do Cárcere", duas belas adaptações de Graciliano Ramos O repórter arrisca uma interpretação – "Brasília 18%" tem o humor de "El Justiciero" filtrado pelo experimentalismo de "Fome de Amor", que hoje pode ter adquirido status de cult, mas na época (fim dos anos 1960) foi recebido a pedradas. "É isso!", exclama o diretor. É um projeto arriscado. Nelson não tem medo de arriscar.
Para ele, o importante é botar na tela, de forma pouco convencional, uma reflexão crítica sobre esse mal endêmico que nos atinge. Ele deu alguma atualizada no roteiro para ajustá-lo às últimas denúncias que atingiram o governo do PT, mas deixa claro – "Meu objetivo é mostrar que a corrupção não é exclusividade deste ou daquele partido no poder. Ela ronda a todos. Atingiu os partidos de direita e de centro-direita que nos governaram anteriormente. Atinge agora o PT."
Esse é o tipo de tema que o próprio Nelson trataria de forma alegórica, no passado. Ele resolveu ser direto, mas não necessariamente objetivo. A ambigüidade de "Brasília 18%" provoca perplexidade, desnorteia o público (e os críticos), mas certos aspectos são fortes e merecem ser considerados.
Eugenia, a jovem agredida, violentada e até exterminada pelos responsáveis pela corrupção oficial pode ser muito bem a representação da República, sempre encarnada numa figura de mulher. Que ela ressurja, é, talvez, uma forma de crença do diretor nas instituições, apesar de tudo. Nelson concorda.
"É isso." Sobre a profusão de mulheres belas (e nuas) no filme, ele sentencia – "Sem tesão não há solução." Está relaxado feliz, mas admite que, no fundo, está preocupado. O momento não anda fácil para o cinema brasileiro. Os filmes, com exceção de "Se Eu Fosse Você", têm tido um público baixo, tanto os de autores como os que se pretendem de mercado. Ruy Guerra fez, com "O Veneno da Madrugada", um filme exigente e difícil. Lascou-se porque o público não quis ver a adaptação de Gabriel García Márquez. O filme de Nelson é de mercado, sem deixar de ser autoral. O público quererá vê-lo?
À espera da resposta, Nelson anuncia – vai fazer, em seguida, um documentário sobre Antônio Carlos Jobim. Depois, se tudo der certo, encara o projeto de seu sonhado longa sobre Castro Alves. E sorri, um sorriso de quem está de bem com a vida