Novas reflexões sobre a liberdade

1. Diz a vontade: quero fazer. Diz a razão: podes fazer. Diz a consciência: deves fazer. Diz a lei: permito que faças. Eis aí, esquematicamente equacionado, o itinerário da liberdade possível. Afinal, só podemos conceder essa liberdade quando a vontade de exercitá-la tem o sinal verde da razão e da consciência (o que implica a pré-existência de auto disciplina, de auto controle) e o Aval da própria lei. Desde que esta seja dotada de intrínseca legitimidade, formal e substancial.

2. Numa visão pragmática, há dois aspectos basilares a considerar: a liberdade como potência e a liberdade como ato. Só potencialmente o homem pode fazer ou deixar de fazer o que quer, num irrestrito exercício da sua vontade soberana. Pode, para dar um exemplo extremo, matar. Como pode, numa situação limite, tentar voar, pulando do vigésimo andar. Mas em ambos os casos o ato custará caro. As leis civis e as leis naturais cobrarão o seu tributo. Cominarão suas penas. No primeiro caso, a inevitável prisão. No segundo caso, a indefectível morte. Quer dizer que a liberdade plena é um mito, uma construção irracional do intelecto. A verdadeira liberdade, a livre liberdade de que falou Élouard, sabe autodisciplinar-se. Para não correr o risco de morrer. Ou, o que seria pior, para não ser morta.

3. Ensina Gurvitch: “Não podemos deduzir nem explicar a liberdade humana, nem extraí-la de qualquer construção teorética. Podemos apenas senti-la, vivê-la, experimentá-la e descrevê-la depois”. Com efeito, ela é uma propriedade inalienável, uma qualidade primordial e irredutível da experiência do homem. Tanto em caráter individual como coletivo.

4. Não há plena liberdade, como não há total escravidão. Até dentro das masmorras mais sombrias e infectas os escravos são livres para conceber hinos à liberdade. Ou para cantá-los, em surdina.

5. Liberdade com responsabilidade? Eis aí um pleonasmo transparente. Afinal, a autêntica liberdade – e não as suas contrafações ou simulacros – implica a automática coexistência com a responsabilidade. Exatamente como a pérola dentro da ostra.

6. Como no famoso poema de Frost, o homem tem sempre dois caminhos à sua frente. Um é o da liberdade negativa, a de fazer o que quer. O outro é o da liberdade positiva, a de fazer o que deve. (Como é evidente, o “positivo” e o “negativo”, no caso, envolvem uma concepção ética.)

O primeiro é a estrada larga e sinuosa do voluntarismo exacerbado. O segundo, a vereda mais estreita e mais reta do dever. Num impera o irracionalismo até certo ponto irresponsável. No outro, a razão esclarecida. Entre os dois, qual a opção correta? É clara. Extremamente clara. Nem por isso os equívocos deixam de ser freqüentes.

7. Confundem-se, na órbita do espírito humano, a aspiração de Deus e o anseio da liberdade. Talvez porque só Deus é verdadeiramente livre.

8. Penso que a evolução humana foi possível, em grande parte, não porque a liberdade fosse uma constante (pelo contrário: ela foi, ao longo dos séculos, mais exceção do que regra), mas simplesmente porque a “libertas” foi sempre um sonho, uma aspiração, um ideal do espírito do homem. A bússola e a estrela polar norteando a sua caminhada. “Nascido livre”, como escreve Rousseau no limiar do seu admirável Contrato Social, o homem foi sempre impulsionado por um visceral apetite, por uma radical vocação para a liberdade. Esta foi sempre, nas suas mãos, a reencarnação metafórica – e mais que metafórica, real – do facho de prometeu.

9. Só posso exercitar a minha liberdade no meio dos outros, no seio da comunidade. Como ser livre sozinho? Faltariam os pontos referenciais que me dão a exata medida da minha liberdade pessoal.

10. Gritou Manon Roland, antes de ser guilhotinado, durante a Revolução Francesa: “Liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Isso não me impede de uma colocação quase oposta: liberdade, quantos crimes se cometem para eliminar-te, para restringir-te ou simplesmente porque tu estás ausente!

11. Para Ibsen, o homem mais forte e mais livre é o homem mais só. A tese emerge, transparente, na sua peça O inimigo do povo. Thomas Stockmann é a sua personificação. Tem fundamento a tese do genial dramaturgo norueguês? Só em parte. Ou melhor: não. Na verdade, se a humanidade hipoteticamente se reduzisse a um só homem (o “único”, de Max Stirner?) esse indivíduo poderia por certo exercer em toda a plenitude a liberdade.

Mas seria ela, nesse caso, liberdade autêntica? Não estará a idéia de liberdade associada, numa simbiose estreita, à idéia da sua inexistência, da possibilidade da sua perda, do risco do seu cerceamento? Será possível conceber uma liberdade que não coexista com a sua antítese, com o seu contrário, como a face e coroa da mesma moeda? O conceito “livre” não se fundamenta, em último análise, em ser livre de alguma coisa? E a inexistência desse algo – exterior ou interior ao sujeito da liberdade – não tornaria automaticamente insubsistente a essência da própria liberdade?

Penso que não é necessário responder. De certo modo, as respostas estão implícitas nas próprias perguntas.

João Manuel Simões

é escritor, membro da Academia Paranaense de Letras.

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