Nossa pátria ou nossa mátria?

d111.jpgCurioso, o destino das palavras. Estranho, o mistério do nascimento e, às vezes, a inexplicabilidade da extinção de certos vocábulos.

No caso específico do termo pátria, que tem por raiz o latino ?pater?, por que razão insondável não terá prevalecido, como seria mais adequado e mais razoável, a palavra mátria, tendo por raiz a também latina ?mater?? Deixo a indagação no ar. Se bem que não haja uma resposta plausível para ela, como para tantas outras, aliás.

Era minha intenção inicial abordar o conceito, a um só tempo belo, denso e riquíssimo, de pátria. O preâmbulo inaugural, equacionado nos dois primeiros parágrafos, ocorreu-me ?a posteriori?. Equivalendo a uma espécie de parêntese que, de forma heterodoxa, veio no início da própria crônica. Mestres amantes da ortodoxia talvez não aprovem a antecipação em apreço. Paciência. Vamos em frente, mesmo sem o seu inestimável beneplácito.

Mal tinha iniciado a tarefa, fui obrigado a falar com os meus botões, que têm o mau hábito de nunca responder: quem sou eu para falar sobre pátria? Não obstante, a própria consciência da minha insignificância pensante, levou-me a uma pesquisa sobre o que teriam pensado ? e dito ? sobre o tema, algumas personalidades mais ou menos conspícuas. Imaginava, de antemão, que iria deparar-me com um coro harmônico, uníssono, grandioso como os de Haendel, feito de elogios, loas, louvações, ditirambos, cantatas. Ledo engano. Fatal equívoco. Encontrei, e com surpreendente freqüência, vozes desafinadas, palavras ácidas, colocações viperinas, contundentes.

Vejamos algumas dessas opiniões inesperadas sobre um conceito que, em princípio, se me afigurava indiscutível na sua claridade ofuscante. Assim é que Cipião, o Africano, no exílio, mandou gravar no seu túmulo este epitáfio pleno de amargura e fel: ?Ingrata patria, ne ossa quidem mea habebis?. O que significa, em bom vernáculo camoniano, pessoano ou drummondiano: ?Pátria ingrata, nem os meus ossos terás?.

Por outro lado, o cinicamente cético inglês, que se chama Samuel Johnson, chegou a afirmar que ?a pátria é o último refúgio dos patifes. O ceticamente cínico e desabusado Ambrose Bierce, no seu famoso Dicionário do diabo, contraditou incontinenti o ?primo? da outra margem do Atlântico: ?Não é o último, mas o primeiro…? Já Voltaire, sempre viperino e mordaz, escreveu um dia: ?La patrie d?un cochon se trouve partout où il y a du gland?. Traduzindo: ?A pátria de um porco se encontra em toda a parte onde há bolotas?. Conceito infame, diga-se de passagem. Tipicamente voltaireano, aliás. Pragmático e utilitarista, o gênio da oratória que se chamou Cícero proclamava: ?Ubi bene, ibi pátria?. Ou seja: onde eu me sinto bem é a minha pátria.

Mas deixemos de lado, por (até certo ponto) indigestos e intragáveis, esses pontos de vista de céticos e cínicos, sarcásticos e pragmáticos, e passemos a outras opiniões, mais consentâneas com o conceito admirável de pátria.

 Horácio cantava, num dos seus poemas augustos: ?Dulce et decorum est pro pátria mori? ? é doce e honroso morrer pela pátria. (Embora eu entenda, do fundo do poço da minha insignificância pensante, que é melhor viver por ela). Por seu turno, Lamartine, o grande romântico, escrevia: ?C?est la cendre des morts qui fait la patrie?. Ou seja: é a cinza dos mortos que faz a pátria. Já Byron enfatizava: ?He who loves not his country can love nothing?. Boas, excelentes palavras as do mestre do ?Childe Harold?s Pilgrimage?. E o que dizia o imenso Ruy (de Oliveira) Barbosa? Isto: ?A pátria nada mais é do que a família amplificada?. Poderia alguém dizer melhor?

Camões, no seu verbo solar, cantou magnificamente: ?Esta é a ditosa pátria minha amada?. Já o Camões do século vinte, Fernando Pessoa, disse apenas: ?A minha pátria é a língua portuguesa?. E dois ?primos? seus desta margem do Atlântico, décadas depois, secundaram a mesma afirmação, com as mesmíssimas palavras emblemáticas. Refiro-me a Ribeiro Couto e Guilherme de Almeida.

Aqui, eu volto à minha questão introdutória: por que razão terá prevalecido o vocábulo pátria, ao invés de mátria, que me pareceria mais adequado? Seja como for, considero uma incongruência e uma impropriedade semântica (ou contradição em termos) quando americanos, argentinos ou brasileiros se referem às antigas metrópoles, Inglaterra, Espanha e Portugal, com a expressão Mãe-Pátria. Ou não será?

João Manuel Simões é escritor 

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