Nomadismo moderno

A sociedade contemporânea, construída através dos milênios sobre os fundamentos da posse e da territorialidade, praticamente pôs fim ao nomadismo entendido como o modo de vida em que pequenos ou grandes grupos humanos transferiam suas moradas sazonalmente em busca de melhores caça, pesca, coleta e – posteriormente – terrenos férteis para a agricultura.

O período dos grandes fluxos migratórios, durante os quais o Brasil e os EUA se transformaram em grandes caldeirões culturais que os definiram como nações, também vai longe. Entretanto a assim chamada ?globalização?, a facilidade de comunicação imediata com outras culturas e povos através da internet e as necessidades profissionais de mercados cada vez mais internacionais, tem favorecido não só migrações internas e externas, como novas formas de inserção social multidomiciliar.

No Brasil, fechados ciclos importantes como o êxodo rural, a imigração nordestina (especialmente para São Paulo e Rio de Janeiro) e as estratégias de povoamento incentivadas pelo governo (como nos casos de Rondônia e Tocantins), é cada vez mais comum uma nova espécie de ?nomadismo? familiar, movido pela busca de melhores condições de trabalho ou qualidade de vida. Com isso, cidades de porte médio têm visto suas populações crescerem não só na medida esperada pela reprodução de seus cidadãos, mas também pelo afluxo de novos moradores oriundos das metrópoles.

Curitiba é o exemplo histórico, onde as políticas de inserção social da Prefeitura na década de noventa acabaram levando à supervalorização de expectativas de trabalho e segurança. Com isso, a cidade transformou-se, de pacata e provinciana que era, na megalópole violenta e suburbana de hoje. Não adianta: o número de miseráveis é tão grande em nosso País que supera qualquer tentativa de assentamento, seja ele rural ou urbano. Num gesto em princípio humanitário, a Prefeitura de Curitiba saneava e dava feições de bairro às favelas nascentes. O resultado a médio e longo prazo foi a contundente favelização da capital.

Hoje isto se repete: são as cidades de porte médio, principalmente as situadas no sul e sudeste, que atraem não só a massa de miseráveis que vêm em busca de seu Eldorado, como também os cidadãos de classe média em busca de tranqüilidade para trabalhar e viver.

Viver na ponte aérea (Rio-SP, Brasília-BH, etc.), virou rotina na vida muitos profissionais, que por vezes até mantêm dois domicílios. Buscar trabalho nas periferias, em especial para os profissionais da área de saúde, tem sido crucial no estabelecimento de uma relação sadia entre populações e governo. E as cidades-dormitório proliferam, em torno de São Paulo, BH e Porto Alegre, entre outras cidades brasileiras. Sem contar o papel protetor e civilizatório que o Exército Brasileiro vem cumprindo há décadas na região norte.

Sendo um país já unificado pela televisão há mais de trinta anos, o Brasil vem demonstrando ser terreno mais que propício para a proliferação de atividades pela rede mundial de computadores. Namoros iniciados via internet impulsionam as vendas do setor de vôos domésticos. Empregos ?virtuais? já são abundantes nas mais variadas áreas do conhecimento científico; a web substitui a visita real de imóveis, ajudando a selecionar aqueles que realmente interessam. A importação e exportação entre os estados tende a crescer, levando à valorização e aumento da produção de itens típicos de cada região na indústria e no agronegócio. As diferenças entre leis e impostos, que variam de estado para estado, estimulam o livre comércio entre as unidades da Federação.

É claro que nem tudo são flores, que ás facilidades de comunicação e locomoção atuais que permitem estes fluxos comerciais, sem falar dos turísticos, entre as várias regiões do Brasil e do mundo, unem-se também as dificuldades imensas que os brasileiros encontram para exercer plenamente sua cidadania. A emigração nasce das dificuldades existentes na terra natal (alto custo de vida, desemprego, violência) e desemboca numa certa alienação cultural para alguns, na segregação para outros (vide o exemplo das favelas das grandes cidades) e em muitos sonhos frustrados. Mas há os que vencem, os que conseguem abraçar cidades como suas, os que jamais voltariam à sua origem. E há aqueles que já podem se considerar cidadãos do mundo, mesmo nascidos em nossa (ainda) distante e misteriosa província.

Descobri recentemente que toda esta burocracia que envolve fronteiras, passaportes e leis de imigração é extremamente recente: é reflexo dos traumas da Primeira Grande Guerra e dos traumas raciais e econômicos que se seguiram. Antes havia fronteiras mais fluidas e o deslocamento das forças de trabalho era comum na Europa do século XIX. Engolimos como novidades, travestidas de tecnologia, eventos comuns a esta aldeia que sempre foi ?global? – apenas repetimos, ignorantes, passos que já foram comuns aos nossos antepassados.

Renato van Wilpe Bach é médico e escritor

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