O portão da última morada de Bashô estava aberto. Três bananeiras foram caprichosamente plantadas na entrada, para lembrar o significado do seu nome, banana. O jardim japonês extremamente bem cuidado conduz a uma pequena elevação, um quase morro cortado por um riacho. E minúsculas pontes, pedras limpas com seixos pequenos e sementes em cima delas, conduzem ao altar consagrado pela meditação. De lá do alto da elevação, o rio Sumida surgiu imponente, atravessado por pontes metálicas e com uma vista dos arranha-céus ultratecnológicos de Tóquio ao fundo.

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O portão do último abrigo de Yukio Mishima estava fechado, e havia um soldado armado na entrada. Centenas de burocratas de terno e guarda-chuvas se apinhavam na máquina de reconhecer crachás, porque ali funciona o Ministério da Defesa japonês de Tóquio, em Ishigaya. Só se pode entrar como visitante com agendamento antecipado, e os atendentes na portaria não parecem fazer muita ideia de que um dos seus maiores intelectuais (poeta, ator, dramaturgo, cineasta, pensador) cometeu seppuku (o suicídio ritual) e foi decapitado ali há 44 anos, em 1970.

As presenças de Bashô e Mishima, o maior poeta clássico e o maior poeta contemporâneo do Japão, parecem pairar nos lugares de Tóquio onde se despediram da vida para entrar na História. A presença de Bashô está na pauta do dia. Estão em marcha as comemorações dos 370 anos do nascimento do artista. Uma exposição reúne seus manuscritos originais, seus objetos cotidianos e seus desenhos. Sua influência é mais palpável, mais cotidiana – o poeta maior do haicai viveu nessa área em que foi reconstituída sua antiga casa em Morishita, e que hoje abriga um museu, quando Tóquio ainda se chamava Edo, a partir de 1680. Hoje, poetas iniciantes fazem leituras de haicais, debatem literatura e filosofia em seus auditórios abertos para o jardim. Senhoras da vizinhança do parque, a duas quadras dali, vêm alimentar os pássaros e conversar com a divertida faxineira.

A influência de Bashô atravessou os séculos intacta e desembocou na América. Pode ter batido em Walt Whitman.Tem impacto nos beatniks (Gary Snyder é um seguidor) e também é crucial no Brasil, seja na obra de Haroldo de Campos ou Paulo Leminski.

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Bashô fez do clássico poema de 17 sílabas, ambientado nas estações do ano, um manifesto de interação entre a natureza e o intelecto. A identificação do homem com a vastidão do universo, na poesia de Mishima, que se associava com a meditação zen, mudou a expectativa da arte como um princípio de vaidade racional.

Redenção

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Mishima completaria 90 anos em janeiro. O suicídio ritual extemporâneo de Mishima (cujo nome real era Kimitake Hiraoka) teve um impacto fundamental na reinvenção do Japão do pós-guerra. Ele tinha sido indicado três vezes ao prêmio Nobel de Literatura, estava no auge.

Seu sacrifício impeliu seus contemporâneos a buscar saídas, a sustentarem novas motivações – viram-se desafiados a se reinvestirem de sentido, nadar para além do comércio e da submissão cultural. O cineasta Paul Schrader revisitou sua lenda no filme Mishima, em 1985. No Ministério da Defesa, antigo quartel general que ele tomou de assalto com seu grupo paramilitar, para imolar-se em nome da honra, a rotina burocrática suplantou o mito. Trouxe o debate para o campo da morte e do sexo.

No ensaio Mishima ou a Visão do Vazio, a autora belga Marguerite Yourcenar sustenta que Mishima se matou, entre outras coisas, porque havia constatado a perda do sabor das palavras.

“Numa jornada, doente/meus sonhos vagam por um pântano murcho”. O último poema de Bashô, escrito em 8 de outubro de 1694, não ecoa no futuro. O pântano do desaparecimento está todo florido. Mishima, que arrancou as próprias vísceras com uma espada, ainda espera a derradeira redenção.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.