Um dia antes de morrer, em 1994, enquanto hospitalizada, a mãe de Ney Latorraca perguntou a ele por que ele não trabalhava com “aquele homem da fumaça”. Ela se referia a Gerald Thomas, o diretor e dramaturgo carioca que tem trabalhos em países da Europa e nos Estados Unidos. A fumaça era apenas um dos artifícios que Nena, mãe do ator, tinha visto nos trabalhos de Thomas, profissional que julgava instigante.

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Seguindo os conselhos da mãe, Ney foi dirigido por Thomas em Don Juan, Unglauber (ambas em 1995) e Quartett (1966). Eles retomam a parceria em Entredentes, espetáculo que estreia nesta sexta-feira, 11, no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.

A ideia da retomada surgiu em 2012, quando Thomas visitava Ney em seu apartamento no Rio, após passagem pelo Festival de Curitiba. Eles conversavam na varanda, com vista para um trânsito caótico que parava as ruas em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas. “Começamos a conversar sobre o engarrafamento e aí eu pensei que os motoristas com Google Maps poderiam se ver dentro do trânsito”, conta o diretor.

Os pensamentos foram se encadeando até eles chegarem a uma crítica ao que Thomas chama de banalização do bem. “Essa sociedade Google, Wikipédia… Todo mundo tem a informação nas mãos, porque tem smartphones. Morre o Wilker e, em dois segundos, a gente tá sabendo. Todo mundo tem Twitter, mas o que você pode dizer com 140 caracteres?”, questiona. E complementa: “Aí vem esses comentários idiotas, isso que o Facebook virou, que é foto de comida antes de comer. Ninguém sabe mais p… Nenhuma”.

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Thomas escreveu Entredentes especialmente para os atores que formam o elenco (Ney contracena com Edi Botelho e Maria de Lima). A técnica começou com Julian Beck em Beckett Trilogy, em 1985. De lá para cá, ele fez textos para Fernanda Montenegro e Fernanda Torres (The Flash and Crash Days, 1991), Marco Nanini (Um Circo de Rins e Fígados, 2005) e Serginho Groisman (Brasas no Congelador, 2006). “Por conhecer bem os atores, o texto se torna muito pessoal. No palco, eles levam o nome que têm na vida real, não uso nenhum pseudônimo. A peça tem idiossincrasia, eu sei quais são as manias deles, sei do que eles gostam”, explica.

A nova trama começa com a chegada de Ney e Edi como astronautas. Na dramaturgia fragmentada de Thomas, eles se livram das vestes de viajantes espaciais e viram um islâmico radical e um judeu ortodoxo que se encontram no Muro das Lamentações, em Jerusalém. É neste ambiente que são feitas as críticas, por exemplo, ao uso exacerbado e, por vezes, inadequado da tecnologia e da informação. Considerações sobre a política e a corrupção no Brasil também aparecem na montagem, propositadamente no sotaque português de Maria de Lima.

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Com as idiossincrasias dos atores, entram no palco fatos de suas vidas. É o caso da operação de Ney para a retirada da vesícula em 2012. O processo foi seguido de uma inflamação nas vias biliares que o deixou em estado muito grave. “A peça cita até o cassino da minha família na Urca. Tudo entra na história. É como se eu emprestasse o meu corpo para um personagem: o Ney está fazendo o Ney.”

O espetáculo tem, ainda, uma brecha jornalística. É um espaço para abordar acontecimentos bem atuais, como os conflitos na Ucrânia, a situação da península da Crimeia e assuntos que ainda estão por vir. “O texto do Thomas nunca fica pronto. É um teatro lúdico, louco no bom sentido, elétrico, ligado. Minha função como ator é procurar esses projetos”, diz Ney.

Efeméride

Além de marcar o retorno de Ney ao teatro depois dos problemas de saúde, a estreia de Entredentes ocorre um ano antes de o ator completar 50 anos de carreira. “O momento mais marcante foi agora. Quase morri, voltei, fiz um trabalho genial na TV (ele se refere ao especial Alexandre e Outros Heróis, exibido na Globo em dezembro de 2013) e estou trabalhando com o Thomas nesta peça de teor mais crítico. Teatro tem de ter denúncia, coisa fácil não me interessa”, acrescenta. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.