A série The Witcher, cuja primeira temporada estreia nesta sexta-feira, 20, na Netflix, narra a saga de Geralt de Rívia, um caçador de recompensas que conjuga espada e feitiços para matar monstros – por um preço, é claro. Com criaturas mágicas, um pano de fundo medieval e duelos violentos, esse universo engrossa o filão da fantasia na TV.
Este ano, a HBO encerrou Game of Thrones, inspirada na obra de George R.R. Martin, e deu início a His Dark Materials, baseada nos livros de Phillip Pullman.
A Amazon Prime deu continuidade a Deuses Americanos, extraída do romance de Neil Gaiman, e prepara uma série no universo de J.R.R. Tolkien. Nesse panorama, os livros de The Witcher, escritos pelo polonês Andrzej Sapkovski, eram candidatos óbvios para uma adaptação audiovisual.
Embora a série venha sendo tratada como uma resposta da Netflix ao estrondoso sucesso de Game of Thrones, o ator Henry Cavill, que interpreta Geralt, desconversa: “A única comparação que você pode fazer é que elas existem dentro de um mesmo gênero, o de fantasia”, disse ele ao jornal O Estado de S. Paulo durante a CCXP. Mas além de ter três episódios dirigidos por Alik Sakharov, que fez diversos capítulos de Game of Thrones, The Witcher pertence ao mesmo movimento literário de George R.R. Martin.
Publicada entre 1992 e 1999, a série de livros de The Witcher reflete uma guinada sombria pela qual a literatura fantástica passou entre os anos 1980 e 1990. Vale notar que, embora a série da Netflix possa ter sofrido influência do épico da HBO, as aventuras de Geralt de Rívia foram escritas antes da disputa pelo trono de Westeros – George R.R. Martin publicou o primeiro volume das Crônicas de Gelo e Fogo, intitulado A Guerra dos Tronos, apenas em 1996.
A literatura fantástica se formatou nas páginas baratas das revistas pulp dos anos 1930, a partir das aventuras de capa e espada de Robert E. Howard e das narrativas de horror cósmico de H.P. Lovecraft, ambos mortos precocemente antes da 2.ª Guerra Mundial. Nos anos 1950, o gênero aflorou na alta fantasia de J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis. Essas obras retratavam personagens nobres, ecoavam temas religiosos e narravam lutas épicas entre o bem e o mal.
Os livros de Andrzej Sapkovski se inserem justamente em um movimento de subversão dessas temáticas clássicas estabelecidas por O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Nárnia. Essa subversão se deu por formas diversas. Em sua sátira Discworld (1983), Terry Pratchett usava do humor para zombar dos clichês da fantasia.
Em As Brumas de Avalon (1982), Marion Zimmer Bradley recontava as lendas arturianas de um ponto de vista feminino, como Margaret Atwood faria com a Odisseia em Penelopíade (2005). A obra de Neil Gaiman situou mitologias diversas em meio à vida urbana a partir dos anos 1990.
Em meio a esse questionamento das fundações e premissas mais básicas da literatura fantástica, Andrzej Sapkovski – assim como George R.R. Martin, vale lembrar – desafiou justamente as convenções morais do gênero. No mundo de The Witcher, não há luta entre o bem e o mal, porque ninguém é essencialmente bonzinho. Todos são falhos, movidos por interesses próprios e paixões contraditórias – o que os torna humanos em um mundo horrível.
Esse tom sombrio explica por que a cena que abre o primeiro livro de The Witcher, O Último Desejo, mostra Geralt como um forasteiro durão chegando ao vilarejo de Wyzim, sendo recebido com hostilidade pelos frequentadores de uma taverna e se engalfinhando em uma briga sanguinolenta com eles. Nada poderia sintetizar melhor o espírito de uma saga em que todos são anti-heróis. Geralt caça monstros, mas em geral os piores monstros costumam ser as próprias pessoas.
O protagonista é um bruxo (em inglês, um “witcher”), o que significa, nesse mundo, ter sido geneticamente modificado e treinado desde a infância para ser um guerreiro frio, mas também implica em sofrer com o preconceito dos demais e ter sua própria humanidade questionada. A discriminação, aliás, é um dos maiores empecilhos para um dos principais objetivos de Geralt: formar uma família. Suas únicas aliadas são a bruxa Yennefer (Anya Chalotra), seu principal – embora não único – interesse amoroso, e a princesa Cirilla (Freya Allan), uma espécia de filha adotiva que projeta nele uma figura paterna.
Sendo um pária da sociedade, Geralt consegue transitar entre exércitos inimigos e até mesmo entre diferentes extratos sociais. Sua profissão lhe concede por vezes livre acesso até mesmo a monarcas – afinal, não raro a nobreza precisa de alguém para desempenhar seus trabalhos sujos, especialmente quando essas tarefas envolvem magia ou força bruta.
Em 1992 e 1993, Sapkovski publicou duas coletâneas de contos interligados entre si, que apresentam o universo e os personagens da série da Netflix. A trama principal dos livros está em uma pentalogia posterior que narra a história de Geralt, Yennefer e Ciri. Em 2001, um filme de Marek Brodzki condensou todos os livros em pouco mais de duas horas. Nos anos 1990, a série foi transformada em quadrinhos na Polônia e, em 2013, o prestigioso selo americano Dark Horse criou uma nova adaptação no formato.
O que popularizou de vez The Witcher para o mundo, porém, foi a trilogia de videogames produzidos pelo estúdio polonês CD Projekt Red entre 2007 e 2015 – o mais recente título, aliás, foi eleito o melhor jogo do ano no The Game Awards, o “Oscar dos games”. Agora é a vez de a Netflix levar esse universo sombrio e moralmente dúbio para um público ainda mais amplo.