Neo-noir ‘Um Lance no Escuro’ é lançado em DVD

Há 24 anos o professor de cinema Stephen Prince publicou um livro com título irônico, Produced and Abandoned (Produzido e Abandonado), tomado de empréstimo de um clássico do cinema italiano, Seduzida e Abandonada (1964), de Pietro Germi. No livro, Prince fala dos melhores filmes que poucos viram, relacionando entre eles aquele que alguns críticos consideram ser o principal do diretor norte-americano Arthur Penn (1922-2010), Um Lance no Escuro (Night Moves, 1975). Pois bem, já não existem mais razões para ignorá-lo. Ele está sendo lançado em DVD numa cópia restaurada pela Versátil Home Video e certamente vai deixar o espectador em dúvida se Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas (1967) continua, de fato, seu melhor filme.

Um Lance no Escuro criou, além disso, um gênero: o neo-noir. Nele não há lugar para os detetives durões do tipo Marlowe, criado por Raymond Chandler. O detetive do filme de Penn, Harry Moseby (Gene Hackman), também bebe e encontra mulheres fatais pelo caminho, a exemplo de Marlowe, mas não é tão esperto ou decidido. Ao contrário. É um tipo saturnino, que não conheceu o pai, é traído pela mulher e cai numa armadilha por excesso de ingenuidade – o que jamais aconteceria a Marlowe, viril, brigão, jogador de xadrez e bastante experiente para evitar casos de separação matrimonial. Ou ninfetas desaparecidas.

No caso de Um Lance no Escuro, ela é mais que uma ninfeta. É uma ninfomaníaca (a estreante Melanie Griffith, aos 17 anos). Lasciva o suficiente para fugir com o padrasto, Delly Grastner é filha de uma atriz decadente, que contrata o detetive particular Harry para trazer de volta a garota – não por amor, mas por precisar dela ao lado, cumprindo assim uma cláusula do testamento do marido, que a obriga a tanto.

O fato de a desaparecida em questão integrar uma família de Hollywood rende uma boa parábola – e Penn não a desperdiça, fazendo do clã Grastner o exemplo de um núcleo disfuncional como o do seu detetive Harry. Ele, aliás, flagra a mulher e o amante entrando numa sala de cinema. Nada parece real em Um Lance no Escuro. Nessa desconstrução da figura do detetive particular típico dos anos 1940, Penn captura não só o espírito da contracultura dos anos 1970 como o desmoronamento da família tradicional. Revela, acima de tudo, a inabilidade do americano médio para se relacionar com um outro que não seja seu espelho.

Harry não se identifica com a mulher (Susan Clark). Tenta outra chance com a ‘femme fatale’ Paula (Jennifer Warren), que encontra em Florida Keys, apenas para descobrir que foi traído pelas duas. O sentimento predominante no filme é o de abandono.

Dito assim, Um Lance no Escuro pode parece depressivo, mas tudo o que Arthur Penn, cultuado pelos franceses, não pretendeu foi realizar um filme de detetive que desprezasse a ação – há cenas eletrizantes como o voo de um hidroavião em direção ao barco onde estão Harry e a amante. O roteirista Alan Sharp faz até uma brincadeira com a nouvelle vague, quando Harry recusa um convite da mulher para ver Ma Nuit chez Maud. “Vi um filme de Rohmer certa vez; era como ver uma pintura secar.” É um comentário que tenta afirmar os filmes de Penn como um produto americano.

Com efeito, seria difícil para um europeu traduzir o sentimento de desencanto da era pós-Watergate recorrendo a um filme amargo de detetive – Godard associou a investigação do detetive particular a um processo político, mas Penn faz dela uma busca de autoconhecimento. Um detetive não vence o crime por seu sentimento de honra. Harry, desiludido, já nem sabe mais o que isso significa. Ele tem obsessão por resolver problemas, mas não consegue sequer saber em que ponto seu casamento falhou. Ele e a garota ninfomaníaca não têm lugar na sociedade – daí sua identificação com Delly, surgindo a dúvida se deve ou não levá-la de volta à casa da mãe. Às vezes não se tem mesmo um lar para voltar. Penn fala de uma América derrotada no Vietnã, envolvida num escândalo presidencial (Watergate) e de uma contracultura em fiapos. Tudo isso num “simples” filme de detetive.

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