Nena

Chuviscando. Tempo-padrão de Curitiba. Não é garoa. Não é chuva. O chuvisco é a quase chuva. Virá chuva quando o tempo fecha. Pára se o tempo abre. Abre o sol, como se diz por aqui. Ninguém fica em casa por causa do chuvisco. Guarda-chuvas poucos. O chuvisco não assusta ninguém, não estraga programa, não impede churrasco, não pára jogo de futebol. Olhamos pela janela pelo simples conferir. Quando faz sol, sol mesmo, inconteste, a luz entra pela fresta da persiana. A luz fria do dia de chuvisco fica fora, não consegue entrar. Céu de Curitiba. Céu branco. Não é cinzento, como se convencionou dizer. Céu cinzento na Europa. Curitiba quer ser Europa, vez ou outra. Deus me livre, melhor continuar Curitiba, única, meio tudo, tudo ao mesmo tempo. Em Curitiba o céu é branco. Confira quem quiser. Olhamos pela janela para ver se dava para atender a Estela. Acordada desde cedo. Queria sair. Ficar no apartamento não tem graça com um Mundo todo lá fora. O Mundo é ainda maior quando se tem pouco mais de um ano. Estela acordou pedindo para sair. Para ir ver. Ir brincar rápido, sair ligeiro da monotonia do apartamento.

Moramos ao lado da Nena. Minha tia. Única irmã da minha mãe. Nunca chamei de tia. Ou de Tia Nena. Sempre foi Nena. A medida que fui aprendendo, pequeno, quem são as tias, os tios, os primos, percebi que a Nena não, ela não se encaixava em nenhuma classificação. Merecia uma categoria especial. Não poderia ser tia, ainda que irmã de minha mãe. Tia nunca foi. As tias têm os primos, ou vão ter os primos. Tias, tratamos diferente. Sempre tratei a Nena de igual para igual. Como a Nena trata todo mundo. Trata dizendo na hora, na bucha, o que pensa. Não esconde. Não precisa. Muita gente não gosta. Muita gente se esconde atrás de "sims" que querem dizer não, de promessas falsas e incumpríveis, de sorrisos que escondem antipatias, devidas ou indevidas. Da polidez e da delicadeza dependem as pessoas que dependem de outras pessoas. Nena nunca dependeu de ninguém. Sempre se virou sozinha. Vive muito bem, leva a sua vida, aproveita a sua vida sem perguntar se o que faz é certo ou errado. Faz por ter vontade de fazer. Porque sim. Talvez por isso se dê tão bem com os bichos. Com os cavalos que sempre foram sua paixão. Os cavalos que ama, que são sua vida. Com outros bichos, cachorros, gatos, passarinhos, peixes. Os bichos são absolutamente sinceros. Gostam, desgostam. Não fingem. Não inventam sentimentos convenientes. As pessoas inventam, fingem o que sentem, fingem para conseguir o que querem, o que quer que seja. Os bichos e a crianças não. As crianças pequenas. Crianças que ainda estão longe de ser gente. Ainda estão num degrau superior. As crianças e os bichos são meios anjos, na verdade. Penso assim. Acho. São como deveriam ser todos. São como nos ensinam que deveríamos ser. A medida que viramos gente, viramos menos anjos. A Nena é gente, é adulta, mas se dá melhor com as criancinhas e com os bichos. Nena se entende melhor com os anjos.

O chuvisco lá fora, Estela querendo sair. Sairia. Não temos muita frescura. Vivemos, eu e a Fer, muito tempo fora. Lá, os bebezinhos saiam na neve. Frio abaixo de zero. Friozinho de Curitiba, tempo que não faz mal para ninguém. Onde já se viu. Estela queria ir visitar seus amigos. Os amigos cachorros. Os cachorros da Nena. A casa onde Estela brinca todas as manhãs. A casa que já foi dos meus avôs, do Vô Locher, da Vó Lia. Casa onde hoje mora a Nena. Um terreno enorme, árvores enormes no terreno. Nena reformou inteira a casa. Linda, hoje. Uma varanda que dá para o gramado. Ficamos na varanda, Estela fica na grama. Brinca pisando na terra, pegando no chão. Brinca conversando com os cachorros. Um cocker e um boxer. Igor um filhotinho, filho do boxer Boris. Mansíssimos. Respeitam a Estela. Se entendem. A Nena fica lá, olhando, cuidando. Curtindo. Um dia, agradeceu a Fer por levarmos lá a Estela. Para brincar na sua casa. Hoje a Estela é sua grande companhia. Ela, a Estela, os cachorros brincam, aproveitam a alegria simples do existir. Como sempre me tratou, Nena e Estela se tratam de igual para igual. Conversam e se entendem, como nos entenderíamos todos se fossemos mais sinceros. Se fôssemos como deveríamos ser. Nena mostra para Estela as cores do Mundo. Aos poucos. Homeopaticamente. Os passarinhos que cantam no jardim, as flores, os vasos cheios de flores, os enfeites de cavalinho que se espalham pela casa. Mostra a boneca que ganhou, já batizada, das amigas do Sion. Maria Lúcia o nome. O nome da minha Mãe, da irmã da Nena. Minha Mãe partiu cedo demais, deixou todo mundo com uma saudade incurável. Uma saudade enorme a saudade que a Nena sente. Saudade da sua única irmã, de uma de suas poucas boas amigas. Hoje, a Estelinha é uma delas. A minha filha Estela, que por ser minha filha, tem um pouco de minha Mãe. Traz nela um pedaço da minha mãe querida que tanta falta me fez e faz.

O chuvisco prateia a grama. O chão meio molhado, grama molhada. As gotinhas do chuvisco vão crescendo nas folhas, nas folhas viram pingos. Pingos que caem, não caem. Ficam pendurados na pontinha dos galhos, até cair, fingindo chuva. Chão brilhando, verniz de água. Estela ainda na varanda, Nena joga uma enorme bola amarela. Pega a bola, Nicolai! Nicolai é o cocker. A Estelinha treme de alegria, vibra cada vez que Nicolai corre atrás da bola. Repete, aponta: A bô, a bô… Não consegue dizer bola ainda. Pede que Nena continue, que o Nicolai continue correndo. Nena no jardim, pisa na grama molhada. Grama prateada, o pé descalço. Pisa no chuvisco, pega bola, segue as instruções da Estela. Joga a bola. Pega Nicolai, pega! O cachorrinho dispara, a bola cai atrás das hortênsias. Nena caminha na grama. O tempo abre, o tempo firma. O chuvisco vira sol. Ilumina forte tudo de uma vez. Colore tudo. Ilumina a Nena, que sem nunca ter sido tia agora virou Vó.

Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

aristides@aristidesathayde.com.br

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo