Platão não gostava de imitação, mas seu discípulo Aristóteles gostava. O processo mimético, para a filosofia platônica, era falso, a imitação da imitação. Já o pensamento aristotélico admitia essa e outras possibilidades, talvez antevendo a estética paródica do pintor paulista Nelson Leirner, que, aos 83 anos, não se cansa de fazer rir com sua arte, cujo alvo é sempre o cânone visual ocidental, de Leonardo Da Vinci a Duchamp.

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Essas são apenas duas de suas vítimas preferenciais na exposição Traduções: Nelson Leirner, Leitor dos Outros e de Si Mesmo, que será aberta nesta terça-feira, 1º, às 20 horas, na Galeria Vermelho, com curadoria da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. As outras vítimas atendem pelos nomes de Joseph Beuys, Damien Hirst, William Kentridge, Matisse, Mondrian e Velázquez.

Para cada um deles Leirner reservou uma sala, não como um tributo aos artistas, mas como uma tradução particular de suas obras universais. Citando o velho ditado italiano que equipara o tradutor a um traidor (“traduttore traditore”), a curadora adianta que essa tradução visual é livre e pode até trair o original, o que acontece de fato.

Leirner é um legítimo ‘trouble maker’, na linha do dadaísta Duchamp: já empalhou um porco e mandou o animal para um salão de arte, em Brasília, em plena ditadura (1967). O júri (do qual fazia parte o respeitado crítico Mario Pedrosa) aceitou o trabalho. Leirner ficou indignado e interpelou o júri. Como, então, aceitam um porco numa exposição de arte? Bem, o urinol de Duchamp não foi legitimado como obra de arte? Por que não um porco?

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Na atual exposição, pela ordem de entrada em cena na história da arte, Da Vinci ganha releituras de duas de suas mais famosas pinturas: a Mona Lisa (que usa óculos escuros ou serve de fundo para um relógio de parede) e a Santa Ceia (também em várias versões, entre elas a de um jantar em que o prato principal é hambúrguer). As Meninas do espanhol Velázquez são acossadas por um enxame de moscas.

Prosseguindo: os recortes de Matisse são usados como estampas em travesseiros. A ordem ortogonal do holandês Mondrian serve para construir um gaveteiro. A roda de bicicleta de Duchamp é suporte para uma colagem de emoticons. Os rasgos do argentino Lucio Fontana na tela se transformam em zíperes. O alemão Beuys some de cena, restando apenas o chapéu e as roupas de feltro. Os tubarões embalsamados do inglês Damien Hirt ganham uma versão de brinquedo. As animações de Kentridge servem para decorar pratos. Finalmente, a japonesa Kusama, obcecada por bolinhas, também é atacada pelo vírus da cultura de massa: um muppet sobe ao topo de seu ícone, a abóbora. Curtiu, como perguntam nas redes sociais?

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Ainda tem mais: a curadora resgatou para a mostra uma obra rara, um vestido para o carnaval de 1968 desenhado por Leirner especialmente para o extinto Suplemento Feminino do Estado, que, a exemplo das peças (em madeira e plotter) com zíper, repetem o histórico gesto de Fontana que, ao fazer incisões na tela, nos anos 1950, criou uma nova espacialidade.

“Leirner tira a sacralidade da obra de arte, a aura de peça única”, diz a curadora Lilia Schwarcz. “Piadas, como disse (o historiador americano) Robert Darnton, podem ser pontos de partida para estudos históricos, como prova a leitura de O Grande Massacre de Gatos”, conclui. O livro de Darnton em questão, baseado em fatos aparentemente sem importância da história francesa, acaba revelando mais sobre ela que exaustivos estudos acadêmicos. De modo similar, acentua Lilia, o humor corrosivo de Leirner é uma janela para enxergar a arte de outra perspectiva. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.