A conversa é do começo dos anos 80. O pianista acabara de chegar ao Rio, vindo de uma temporada na Europa. E desabafava. “Não sei lidar com a rotina, o fastígio profissional. Chega uma hora em que não dá mais. Então mudo o roteiro, o repertório. Reajo.” Quase 30 anos depois, Nelson Freire reagiu de novo. Nesta terça-feira, abre sua temporada brasileira, na Sala São Paulo, com a Orquestra Nacional Russa. É o primeiro de uma série de apresentações que fará no País, nas quais o público pode esquecer dos grandes concertos românticos que fizeram sua fama, substituídos por peças de Mozart, Manuel de Falla e Villa-Lobos.
Todo grande artista tem suas idiossincrasias. Com Freire, não é diferente. Durante décadas, ele se recusou a gravar, voltando aos estúdios apenas no começo dos anos 2000. Os discos registrados desde então reforçaram a fama de seu nome mundo afora. Mas o pianista cisma em não se entregar de vez ao mercado. No ano passado, recusou convite para gravar a integral dos concertos para piano de Beethoven com o maestro Riccardo Chailly e a Gewandhaus de Leipzig, o que para muitos artistas seria o ponto alto da trajetória profissional. Em vez disso, em fevereiro, voltou aos estúdios para gravar um disco exclusivamente dedicado a compositores nacionais, “Nelson Freire – Brasileiro”, que deve chegar às lojas no segundo semestre.
Não deixa também de ser idiossincrática a decisão de mudar um pouco o repertório das apresentações no Brasil. Orquestras pelo País afora sabem que programar um concerto de Nelson Freire é garantia de ingressos esgotados. Mas ele, pessoalmente, acha que o público está cansado. “Eu acho que ninguém mais aguenta me ouvir tocando as mesmas coisas”, ele diz, em conversa com a reportagem no fim da semana passada, complementando, com um riso maroto. “E, confesso: eu também já me enchi, sabe? Depois dos concertos em São Paulo, vou tocar os concertos de Brahms e Chopin em Washington, São Francisco e no Canadá. E fico feliz de poder, ao menos por aqui, variar um pouco o repertório.”
Terça e quarta, Freire sola o “Concerto n.º 20 de Mozart”, regido pelo maestro José Serebrier, marcando a abertura da temporada do centenário da Sociedade de Cultura Artística. A peça, diz, é uma de suas preferidas. “Há algo de dramático, vital, nesse concerto, e isso sempre me fascinou. Se a gente olha o período em que foi escrito, percebe que ele está próximo da composição do Don Giovanni e eu acho que ele carrega um pouco o espírito da ópera, certa dramaticidade, certo aspecto essencial.” O n.º 20 era um dos concertos preferidos de Beethoven, que se não chegou a tocá-lo em público, refere-se a ele em sua correspondência. “Não é por acaso, Beethoven já está ali nessa obra, ainda que de forma embrionária”, diz.
O primeiro contato de verdade com esse concerto de Mozart, lembra Freire, foi na juventude, quando assistia a uma apresentação da pianista Guiomar Novaes, de quem é fã declarado. É possível, aliás, estabelecer paralelos entre a carreira de ambos. Ainda que com estilos distintos, nunca repetiam – ou repetem – uma mesma interpretação, as mesmas peças se reinventam a cada concerto. E, mesmo no que diz respeito ao repertório, não custa lembrar que tanto o “Concerto n.º 20” de Mozart como o “Momoprecoce”, de Villa-Lobos, e as “Noites no Jardim de Espanha”, de De Falla, eram as alternativas também de Guiomar ao repertório romântico de seus concertos.
Freire fala com entusiasmo do “Momoprecoce”, que ele tocará inclusive na turnê europeia que fará em agosto com a Osesp regida por Marin Alsop. A peça foi escrita no fim dos anos 20, depois dos primeiros períodos passados pelo compositor em Paris – e é contemporânea de obras-primas como o “Noneto”, as “Cirandas” e alguns dos “Choros”. Escrita para piano e orquestra, utiliza material que o próprio Villa já utilizara anos antes, ao escrever o “Carnaval das Crianças”, misturando temas tradicionais de cantigas infantis a melodias populares brasileiras. “Você tocar a versão para piano solo e depois a orquestral é muito interessante”, diz. “O que acontece é que você se dá conta do requinte da orquestração do Villa-Lobos, do modo como repensa a harmonia, com uma alegria e uma beleza riquíssimas.”
O “Carnaval das Crianças” abre o disco que Freire gravou em fevereiro. Freire gravou, também de Villa-Lobos, “Alma Brasileira” (Choros n.º 5), “A Maré Encheu”, “New York Skyline”, “O Gatinho de Papelão” (da série Prole do Bebê), “Valsa da Dor”, “Saudades das Selvas Brasileiras n.º 2”, “A Lenda do Caboclo”, “Pobre Cega” e “Canoa Virou”, ambas pertencentes ao ciclo das Cirandas. Na sequência, peças de Camargo Guarnieri (“Dança Negra”, “Ponteio n.º 24” e “Toccata”), Henrique Oswald (“Valsa Lenta”), Alexandre Levy (“Tango Brasileiro”), Barroso Netto (“Minha Terra”), Lorenzo Fernandes (“Três Estudos em Forma de Sonatina”), Claudio Santoro (“Paulistana n.º 1” e “Toccata”) e Francisco Mignone (“Maroca” e “Congada”). “Depois de muito mexer, fiquei feliz com as peças que escolhi”, diz, rindo. “No final das contas, se contarmos desde o Tango Brasileiro do Alexandre Levy até a Toccata do Claudio Santoro, o disco cobre mais de 60 anos de produção brasileira para piano. Tá bom, né?” Tá sim, Nelson. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Nelson Freire e Orquestra Nacional Russa – Sala São Paulo (Praça Júlio Prestes, 16). Telefone (011) 3223-3966. Terça e quarta, às 21 horas. R$ 120/R$ 280.