Nelson Freire e Chopin, intimidade absoluta

A melhor imagem para se ter na mente quando se toca Chopin é a de uma árvore que balança por causa do vento, curva-se à frente e para trás, mas permanece de pé porque tem raízes profundas. É assim que Nelson Freire explica seu modo de interpretá-lo, no folheto interno de seu mais recente CD dedicado ao compositor polonês, lançado esta semana no Brasil e no mercado internacional (Decca).

Charles Rosen, pianista igualmente fanático por Chopin, disse o mesmo de um jeito diferente: “Ele foi o compositor mais conservador e mais radical de sua geração”. Esta genial ambiguidade o tornou ao mesmo tempo popular e inovador nos últimos dois séculos. Nas palavras de Nelson, é preciso combinar “classicismo” com liberdade na interpretação – e é o que faz a cada vez com maior refinamento e elegância.

A peça mais longa é o segundo concerto para piano em fá menor, opus 21. Porém a maior parte do CD é ocupada por peças para piano solo. E lá estão algumas de suas favoritas, como a recorrente Balada n.º 4: ela já estava em sua primeira gravação, ainda adolescente. Uma vida inteira de convivência com ela fecha de modo brilhante o arco virtuoso das comemorações de seus 70 anos, distribuídas em vários outros lançamentos importantes em 2014.

O concerto foi gravado em março de 2013 na Philharmonie de Colônia, com a Orquestra Gürzenich e o jovem regente francês Lionel Bringuier, de 28 anos, estrela ascendente que construiu a relação sonora ideal com o piano solista. Explico: critica-se a orquestração de Chopin, atribuindo-lhe deficiências, porém seu modelo de concerto não era Mozart (ele não ouvira nenhum de seus 27 concertos quando compôs seus dois, em Varsóvia). Como bem descreve Rosen, “a música de Chopin derivou amplamente de sua experiência inicial com a ópera”. Ele vê o piano solista como um cantor de ópera. O bel canto de Bellini foi o modelo que Chopin transplantou para o domínio instrumental. Sente-se isso nos desfiles de longas melodias em seus noturnos, ou em seus concertos para piano, sobretudo o segundo. À orquestra, cabe a modéstia de apenas acompanhar o solista e jamais exorbitar, mesmo quando a partitura pede um fortíssimo.

Em compensação, a parte do solista exige muito. Nelson confessa considerar este “o mais difícil de todos os concertos para piano”. Mas não pense em malabarismos virtuosísticos e sim em investimento emocional. Rosen reconhece que “quando se trata de lidar com as invenções de Chopin, nosso vocabulário técnico se torna ridículo”. O poeta Heinrich Heine, que assistiu Chopin em ação em Paris em 1838, foi certeiro: “Ele não quer que suas mãos sejam aplaudidas por sua ágil destreza. Aspira a um sucesso mais belo: seus dedos são apenas os servidores de sua alma, e sua alma é aplaudida pelas pessoas que não escutam somente com os ouvidos, mas com a alma”.

Entre as peças solos, apenas criações com as quais Nelson mantém uma intimidade única, como o Impromptu n.º 3, Opus 51, a diáfana Berceuse opus 57 e as três Mazurcas do opus 50, além da Polonaise heroica opus 53. Destas, as mazurcas soam, ao lado da Balada, como pontos culminantes desta gravação excepcional. Nelas se revela o gênio de Chopin em partir de fragmentos de melodias e fórmulas rítmicas polonesas, em vez de “vestir” canções folclóricas de seu país com uma escrita pianística elegante.

Não é segredo que Chopin está no centro do universo musical de Nelson. Mas é impressionante como, a cada nova gravação, recital ou concerto, seu Chopin nos encanta ainda mais.

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