Dada a própria natureza da personagem biografada em Eva Não Dorme – a lendária Evita, Maria Eva Duarte de Perón, mulher do também mítico Juan Domingo Perón, que governou a Argentina -, o diretor Pablo Aguero estava preparado para enfrentar debates nocivos e até escândalos, quando seu filme estreou no país. “Mas muito me gratificou quando percebi que as pessoas estavam muito mais tocadas pela potência do filme e do material. Foi uma bela surpresa.” Eva no Duerme estreou nesta quinta, 3, nos cinemas brasileiros. Foi o filme com maior número de Condor – o Oscar da Associação dos cronistas argentinos de cinema, como melhor do ano passado.

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Numa entrevista por e-mail, Aguero diz que tem consciência de não haver feito uma ‘biopic’ tradicional, uma cinebiografia.

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“Meu filme é mais uma necropic, que acompanha a vida dos mortos.” No caso, uma morta muito especial – Evita, que inspirou até musical da Broadway, e de Hollywood, com Madonna no papel da protagonista e Antonio Banderas como o Che. Aguero não é muito fã do filme de Alan Parker – “Confesso que essa exaltação do kitsch e do pop sem ironia não me diverte, mas é uma questão de gosto pessoal. O musical dá uma visão muito caricatural de Evita e do Che. É muito redutor, também. Não sei se ela, como pessoa, pode ser qualificada como revolucionária, mas não tenho dúvida de que, no contexto dos anos 1950 e num continente que vivia sob o peso de governos clericais orquestrados desde o estrangeiro, a simples figura de uma mulher no poder era revolucionária, ainda mais uma que, como ela, reivindicava sua condição proletária, defendia o voto feminino e exigia a construção de palácios para os pobres.”

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O filme segue o cadáver de Evita durante 25 anos e por dois continentes. É uma trama macabra. Embalsamado, o corpo andou para cá e para lá. “É uma das histórias reais mais incríveis e fantásticas de que tenho notícia. Na Guerra Fria, teceram-se complôs internacionais completamente delirantes, e que superam a ficção. O que me espanta no corpo de Eva, em particular, é que virou um símbolo mais perigoso que qualquer Exército. E isso significa que, de alguma forma, a imaginação é poderosa, e capaz de revolucionar o mundo. É um pensamento que dá sentido ao cinema, à arte, que às vezes nos parecem vãos e supérfluos, mas nutrem o inconsciente coletivo.”

Pesquisando para fazer o filme, Aguero seguiu a rota do cadáver na Argentina, na Itália e na Espanha. “Passei vários anos pesquisando para reconstituir a verdade histórica e o que aprendi é que ela não existe. Historiadores, testemunhas e os próprios protagonistas da história modificam as versões para adaptá-las a seus interesses, sejam pessoais ou políticos. Foi o que resolvi mostrar no filme. Cada um está preso à sua obsessão particular, e a obsessão de todos é Evita. Eva, a primeira mulher, que vem perturbar a ordem estabelecida.” Nesse sentido, Aguero diz que seu filme aborda um tema universal. “O que me interessa em Eva não é seu projeto político, mas a forma como sua erupção na história foi insuportável para o poder masculino e autoritário. Era a época em que as mulheres não podiam votar nos EUA, que os negros não podiam se sentar à mesa com os brancos. E chega essa mulher proletária, pagã, plebeia… Uma selvagem.”

O almirante Massera, que é o narrador, age como Salieri em relação a Mozart. “Ávido de poder, participa de vários golpes até chegar a governar a Argentina. Líder do terrorismo de Estado, massacra e tortura, propondo uma Inquisição em pleno século 20. E ainda assim não consegue borrar a memória subversiva dessa mulher. Gael García Bernal compreendeu esse olhar político sobre a história e assumiu o papel de vilão, desse homem que, com sua loucura, exalta a figura da inimiga que quer destruir.” Todo mundo busca se apropriar dos mitos segundo os próprios interesses. “Aconteceu com o Cristo, com o Che, com Evita. Não me permitiria julgá-la, mas me parece que seu mito fortalece a luta por igualdade – entre ricos e pobres, homens e mulheres, civilizados e selvagens.”

Aguero admite que suas primeiras versões eram grotescas como uma comédia italiana. “Dei-me conta de que tinha de assumir a responsabilidade histórica e política. Mantive o ambiente irreal, mas eliminando tudo o que, embora verdadeiro, parecia delirante demais, como uma piada de mau gosto.” Foi assim que, em vez de se dispersar, Aguero concentrou sua energia (e o roteiro) em apenas três momentos contundentes. “Escolhi o ponto de vista de três homens completamente opostos a Evita, mas cuja vida foi determinada por ela, para sempre.” O almirante (Massera/Gael), o médico que a embalsamou (Imanol Arias) e o motorista que carregou o corpo e participou da ocultação (Denis Lavant). Para o diretor, a título de conclusão, sua Evita intemporal “encarna uma utopia que todos podemos sentir”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.