Na terra dos cintas-largas

Os índios cintas-largas reapareceram no cenário regional, nacional e internacional, agora como responsáveis por mortes de garimpeiros, como as que ocorreram em Rondônia no início de abril de 2005, numa região próxima ao Rio Roosevelt. Suas aldeias estão distribuídas em quatro áreas indígenas já demarcadas (Parque do Aripuanã, Roosevelt, Serra Morena e Aripuanã), num total de 2,7 milhões de hectares. Sua população total alcança cerca de 1.300 pessoas. Diante de ações desse tipo é difícil, para quem está longe, saber de quem é a razão e a sua causa.

A passagem por Curitiba do antropólogo João Dal Poz (da Universidade Federal de Mato Grosso), que veio participar de uma banca de defesa de mestrado e uma palestra na Universidade Federal do Paraná, me deu a possibilidade de realizar uma entrevista para aprofundar os fatos. Como um assunto deste timbre não se explica em poucas linhas, será divulgado em duas entrevistas ou mais. O professor João, que estuda os cintas-largas desde a década de 80, defendeu uma tese sobre alguns dos temas aqui tratados, intitulada ?Dádivas e dívidas na Amazônia, parentesco, economia e ritual nos Cinta-Larga?. Vamos à entrevista.

Z. Afinal, o que está acontecendo com os cintas-largas?

J.D.P. Como Mary Douglas diz, ?os fatos são teimosos?. O que se pode dizer de uma pequena tribo da Amazônia meridional metida até o pescoço em comércio ilegal de madeira, como noticiam os jornais, e em contrabando internacional de diamantes no mundo, dominado por três ou quatro grandes empresas sediadas na Bélgica, Holanda, Canadá e África do Sul?

Z. O que o motivou a estudar os cintas-largas e como foi sua estadia entre eles?

J.D.P. Quando em 1980 alguns colegas da Opan-Operação Anchieta, hoje Operação Amazônia Nativa, convidaram-me para uma expedição de reconhecimento às aldeias dos cintas-largas dos rios Branco e Guariba, no município de Aripuanã, Mato Grosso, jamais poderia imaginar que, mais de duas décadas depois, deles ainda estaria a me ocupar tão apaixonadamente. Seguindo os nossos manuais para a pesquisa de campo, fui viver na aldeia junto a eles. Os fatos etnográficos estavam lá, ainda que lá também estivessem na mesma aldeia os garimpeiros, os contrabandistas, os pilotos de avião, o vendedor do posto de gasolina, os madeireiros, etc. Viver na aldeia dos cintas-largas, em geral, é uma experiência bastante animada e cheia de sobressaltos. Monotonia só existe quando quase todos vão à cidade, e ali ficam apenas o antropólogo e um ou outro velho e algumas crianças…

Z. Qual era o objetivo inicial?

J.D.P. Estudar as atividades econômicas propriamente ditas, mas de um certo ponto de vista. No fundo, a análise que fiz passou ao largo de questões também instigantes, como os graus de exploração ou a espoliação do patrimônio indígena ou os gravames ambientais das operações de corte e retirada de madeira ou a exploração de garimpo e a flagrante irregularidade dessas atividades extrativas, ou mesmo a corrupção perpetrada por agentes governamentais: Funai, Ibama, Polícia Federal, secretarias de Estado, Prefeituras municipais, senadores da República. Concentrei-me, tanto quanto possível, na perspectiva indígena, no modo como a sociedade cinta-larga interpretava e assimilava estas experiências.

Z. De que maneira os cintas-largas integraram as atividades madeireiras e de garimpo ao seu sistema?

J.D.P. A acumulação capitalista não explicaria as relações, as formas institucionais ou o significado que os cintas-largas atribuíram às atividades madeireiras e garimpeiras. Se assim fosse, também os enawene-nawe e os Rikbaktsa, que são os povos indígenas vizinhos dos cintas-largas, estariam fazendo as mesmas coisas. E eles não estão envolvidos nem com madeira nem com garimpo…

Z. Como explica estes fatos entre os cintas-largas?

J.D.P. Há nestes fatos uma certa lógica, que deve ser interpretada do ponto de vista da sociedade em questão. Na verdade, os próprios cintas-largas manifestam uma compreensão muito aguda do que se passa. Por exemplo, na ocasião de uma reunião com representantes do Ministério Público Federal, um líder cinta-larga dizia: ?Nós antigamente éramos diferentes, guerreiros, matávamos quem matava o irmão. Tinha pagamento. Agora não. Nós temos que melhorar nossa vida. Vocês podem pensar que somos brancos vestidos assim (vestidos como os brancos). Nós não queremos acabar, vocês precisam ajudar?.

Z. Diante dos novos cenários da sociedade capitalista, o que pode acontecer?

J.D.P. A observação etnográfica interage com quadros cada vez mais complexos. Em junho de 2002 eu estava em Cacoal, Rondônia, na assembléia da associação indígena, e um jovem líder me perguntou: ?Se o Lula ganhar, o real vai cair??. A campanha eleitoral, que estava na mídia, também não lhes passou despercebida. O jovem, de calça jeans e um telefone celular na cintura, interrogava-me acerca da disputa eleitoral no cenário político nacional e a sua influência na variação cambial macroeconômica assim fez, porque também isso lhes dizia respeito.

Na próxima parte da entrevista se entenderá porque os cintas-largas deixaram a prática da vingança canibal para privilegiar a troca de mercadorias.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

zeliabonamigo@uol.com.br

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