Na margem esquerda do rio Sena

Numa tarde de outono de 1964, o professor Renato Bernardi, durante a aula de geografia da 1. ª H do Colégio Estadual de Maringá (que veio a ser Gastão Vidigal) foi inquirido por um aluno: “Qual a capital do mundo?”.

Placidamente, o professor respondeu: o mundo não tinha capital, mas se uma cidade merecia a condição, era Paris. Embora a França não fosse império (Napoleão foi uma fase), Paris teve durante longo tempo o magnetismo e a primazia de centro do mundo. Não centro financeiro, em Londres. Mas centro cultural.

Este privilégio foi de poucas cidades na história humana. Atenas, Roma, Florença durante certo tempo e, depois, Paris. Nova York tentou, mas não chegou perto, embora os Estados Unidos fossem – e em parte são – nação economicamente poderosa.

E qualquer um sabe que dinheiro é sinônimo de prosperidade, amigo das artes e da boa vida. Voltando a Paris: o que levou a cidade a esta condição? Certamente, a mistura de charme e fonte de idéias, que começaram com a Revolução Francesa, em 1789. E também boa dose de ousadia. De todas as grandes cidades, nenhuma foi tão generosa com a ousadia quanto Paris. Às vezes em excesso.

E, assim, desde o final do século 18, a cidade foi um farol para a humanidade, cortando a história em duas: antes e depois da revolução, novos e velhos tempos, aristocracia decadente e burguesia ascendente – e no ventre dos ideais burgueses de liberdade, fraternidade e igualdades, os de emancipação do proletariado e dos oprimidos.

Tudo estava ali. Os filósofos não paravam de filosofar, os poetas não paravam de fazer poesia, os escritores de escrever, os músicos de compor, por que os novos ventos eram cheios de musas inspiradoras, de liberdade e boemia. E as musas enchiam a cara em Paris com seus artistas. Uma festa criativa. E os exilados não paravam de chegar.

De 1789 a 1959 – e antes disso, Paris não de se jogar aos cães – a cidade foi palco dos principais movimentos artísticos ocidentais. Na música e na literatura, do romantismo ao modernismo.

Na pintura, tudo que aconteceu depois do barroco, à exceção do expressionismo – incluindo impressionismo, cubismo e surrealismo – foi engendrado na atmosfera parisiense.

Portanto, a cidade parecia eterna como Roma e como cidade luz ficou conhecida. E a cidade foi crescendo e novas fronteiras, como Montmartre, Montparnasse, entre outras, abertas por artistas que chegavam de todas as partes do planeta, reforçavam ainda mais o prestigio e o charme de Paris.

Muitos livros foram escritos para contar o ambiente intelectual parisiense, ainda porque o local em que os artistas se concentravam migrava de bairro para bairro, de acordo com a época.

A mais famosa narrativa, longe de ser a perfeita, é “Paris é uma festa”, de Ernest Hemingway, que abrange as duas primeiras décadas do século 20, chamadas também de era da geração perdida, de americanos endinheirados que fugiam do provincianismo para se esbaldarem na capital francesa.

Os livros mais interessantes sobre o mesmo fenômeno e período talvez sejam Os anos loucos – Paris na década de 20, de William Wiser, e Escritores Americanos em Paris 1944-1960 de Christopher Sawyer-Lauçanno, ambos publicados no Brasil pelo selo José Olympio, com a vantagem de um completar o outro.

Dezenas, talvez centenas de outros livros engrossam a bibliografia de Paris como centro de gravidade intelectual. E se tem outro livro que merece destaque, é A Rive Gauche – Escritores, artista e políticos em Paris 1934-1953, de Herbert R. Lottman (José Olympio, 532 páginas, R$59,00).

O que sai agora é reedição. O livro foi inicialmente publicado no Brasil em 1987 pela Editora Guanabara, comandada por Pedro Paulo Sena Madureira. Como a Guanabara fechou alguns anos depois, o livro sumiu de circulação para ser encontrado em sebos ou edições estrangeiras, como a francesa.

A vantagem da presente edição é que vem revista e ampliada. Sobre o autor, algu,mas palavras: Lottman é americano nascido em Nova York, mora em Paris, escreve para o New York Times e o New York Review of Books. É autor de biografias de Flaubert, Colette, Julio Verne e Albert Camus, esta considerada definitiva sobre o escritor argelino.

Um detalhe: entre as pessoas que o autor agradece pela confecção do livro, está o brasileiro Jorge Amado, que andou dando pernadas na Rive Gauche, depois de perder o mandato de deputado comunista. Ele fez amigos por aquelas e outras bandas.

Dito isto, convém explicar a importância da Rive Gauche. E por que, numa Paris que já dava o que falar, ela merece capítulo à parte. Ou melhor, livro à parte. Assim como Montparnasse algumas décadas antes, a Rive Gauche, entre aquele bairro e o Sena, foi local de referência em Paris no século 20, principalmente nas décadas de 30 a 50.

E deste minúsculo território, durante bom tempo foram emitidos sinais, nem sempre duradouros, de novas ondas literárias, políticas e filosóficas para o mundo.

Ali, entre pequenos cafés, instalou-se um punhado de editoras, cercadas por um bando de intelectuais e o que falavam era ouvido com atenção em Londres ou Nova York, Moscou ou Barcelona, Buenos Aires ou Rio de Janeiro, México ou Munique. Eles, no caso, sujeitos como Jean-Paul Sartre, André Gide, André Malraux, Arthur Koestler, e outros.

Se Paris foi capital do mundo durante bom tempo, a Rive Gauche foi o derradeiro suspiro de poder intelectual da capital francesa sobre o mundo. Em parte por que o mundo assistia a transferência de poder econômico, político e cultural, o último indo junto feito cão vira-lata para os Estados Unidos.

Por esta razão, o período foi marcado por discussões políticas, confronto entre Ocidente e Oriente, comunismo e capitalismo, imperialismo e colonialismo, questões que eram a ordem do dia dos intelectuais, dando origem a expressão “engajado”. A moda era estar de um lado ou de outro, como num campo de futebol. E não ficar omisso. Quem ficava não contava. A Rive Gauche expressava tudo isto.

Além do medo de guerra nuclear, da guerra fria, o período assiste a três das maiores guerras do século 20: Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial, guerra da Coréia, que marca o início dos EUA como gendarme universal.

Sem contar conflitos que jogaram no cenário internacional, novas nações ou nações com novas estruturas, como China e Índia e independência de colônias na Ásia e África. Foi um período de mudanças no mundo inteiro, e os intelectuais do mundo inteiro tiveram outras coisas a fazer que ficar flanando em Paris.

Depois do apogeu da cidade luz, o mundo caiu numa pasmaceira de dar dó – de Paris só vem notícias de uma tal Paris Hilton (nome tão patético quanto alguém se chamar Copacabana Palace) fotografada sem calcinha, como se genitália de patricinha fosse novidade nesta era tão enfadonha, devido a profusão de imagens. Pior, é que não há nada a fazer.

Resta ler sobre os bons tempos, quando Paris pontificava. Mesmo que a época de que Lottman fala em seu livro não tenha sido fácil, não fascinante como Paris dos pré-impressionistas, dos impressionistas ou a dos modernistas, que deslumbrou quem tinha dólar – por isto inesquecível aos americanos.

Estamos num momento de tensão à beira da Segunda Guerra Mundial, no meio do conflito e depois vivendo no meio dos escombros, na reconstrução da Europa. Mas, ainda assim, um ambiente fervilhante, intelectualmente estimulante, uma cidade ideal para alguém com o remoto desejo de deixar as pegadas sobre o planeta, dar um pulo e conferir como andavam as coisas. E as coisas andavam a mil na última “capital do mundo”.

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