Roque Santeiro vai cravar outro marco em sua história a partir de sexta-feira, 27, quando a versão musical estrear no Teatro Faap. Nascida como peça teatral na década de 1960, depois transformada em novela de TV nos anos 1970 (quando foi censurada pelo governo militar) e 80 (atingindo picos de audiência), chega ao palco recheada de canções compostas originalmente pelo mesmo Dias Gomes (1922-1999) que assina os diálogos e também por Zeca Baleiro. Mais importante: apesar dos personagens icônicos, a montagem atinge o objetivo principal, que é se descolar da telenovela e alçar voo próprio.
O texto nasceu primeiro como uma peça de teatro, O Berço do Herói, que estrearia em 1965, mas foi proibida pela censura do governo militar – a crítica explicitamente humanista à forma como se constroem mitos heroicos baseados em fatos reais incomodou os militares. A trama basicamente apresenta a idolatria que toma conta de uma pequena cidade baiana, dedicada ao cabo Jorge, habitante aclamado por ter morrido com bravura na 2ª Guerra. Na verdade, o que se descobre depois é que ele fugiu do front depois de atacado por uma crise nervosa.
Passados dez anos, em 1975, já consagrado como autor de telenovelas, Dias Gomes disfarçadamente adaptou a própria peça e a transformou em Roque Santeiro, cujo primeiro capítulo nem sequer foi exibido: no dia 27 de agosto daquele ano, a Globo recebeu um ofício do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), censurando a novela – o governo descobriu que a peça era a origem do folhetim.
Exatos 36 capítulos já tinham sido gravados com Lima Duarte no papel do deputado Sinhozinho Malta, que comanda politicamente a cidade e é amante de Porcina (Betty Faria), viúva forjada do milagreiro Roque (Francisco Cuoco). Ele volta a Asa Branca 17 anos depois de ser canonizado como um herói morto e provoca um rebuliço, pois põe em risco toda uma estrutura econômica fincada em sua santidade – tramoia da qual até a Igreja participa.
Finalmente, em 1985, já na fase de abertura política, a novela foi exibida, agora com Regina Duarte como Porcina e José Wilker no papel de Roque Santeiro. Um sucesso retumbante, cravando em média 75% da audiência da TV. E, terminado esse trabalho, Dias Gomes deixou, segundo o produtor Edinho Rodrigues, uma versão em musical nunca encenada, no formato de uma opereta popular.
Foi esse material que chegou às mãos da diretora Débora Dubois, que assumiu a missão de não apresentar no palco um remake da telenovela.
E a tarefa foi muito bem cumprida – Débora apoderou-se dos elementos essenciais dos personagens, mas retrabalhou tudo, acrescentando novas qualidades e oferecendo um produto final marcado pela originalidade.
No palco, Roque Santeiro deve seu sucesso ao tom pícaro, tomado da farsa medieval, e reciclado no Nordeste do País pelo talento imenso de Dias Gomes. Texto enxuto, engraçado, mordaz, no qual Gomes atinge aquele ponto ideal (rarissimamente alcançado) que agrada tanto ao gosto popular quanto ao refinado. Débora conta que eliminou apenas algumas partes do início do original, já defasadas.
Assim, com tais elementos, dirigiu um grupo de atores que, além da finíssima capacidade de cantar, comprova uma vez mais seu talento interpretativo. A começar por Jarbas Homem de Mello, que teve a difícil missão de viver Chico Malta, o Sinhozinho eternizado por Lima Duarte. Em cena, Jarbas equilibra com rara felicidade o político astuto, que não suporta ser passado para trás. Isso porque destrinchou o texto e descobriu todas as ricas possibilidades para criar um grande personagem.
Também desafiada, Livia Camargo criou uma notável viúva Porcina com um histrionismo próprio, matreiro e até mais malicioso que o guardado na lembrança televisiva, trabalho libertador de Regina Duarte.
O humor é essencial nesse tipo de mensagem, daí a presença marcante de Nábia Villela, que vive Dona Pombinha, a mulher do prefeito Florindo Abelha, hilariante criação de Dagoberto Feliz. Se ela traz o tom trágico à farsa, marcando presença, ele evoca aquele tipo weberiano do safado simpático, que contorna as situações sem chegar ao conflito, intermedeia os contrários, sempre levando alguma vantagem pessoal. Memorável encenação.
Não podem ser esquecidas também as interpretações de Luciana Carnielli (Matilde, a dona do bordel) e Mel Lisboa, no papel de Pombinha, que evitam com graça a caricatura. Também Flávio Tolezani que, como Roque, é o único que não pode abusar do humor, pois seu personagem é o único realista.
A trilha criada por Zeca Baleiro revela-se exemplar e respeitosa às brejeiras canções originais de Dias Gomes. Detalhe que só engrandece o musical.
ROQUE SANTEIRO
Teatro Faap. Rua Alagoas, 903. Tel.: 3662-7233. 6ª e sáb., 21h. Dom., 18h. R$ 80 / R$ 90 (R$ 30 dias 27/1 e 3/2). Até 7/5
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.