Monumental declaração de amor pela humanidade pintada por Cândido Portinari (1903-1962) e oferecida pelo Brasil como presente à Organização das Nações Unidas (ONU) em 1957, os dois painéis que compõem o mural Guerra e Paz serão reinaugurados nesta terça, 8, à noite em cerimônia na sede da organização em Nova York. “A mensagem retratada por Portinari nesta obra é cada vez mais urgente porque o mundo está num caminho suicida”, diz João Cândido, único filho do artista e diretor do Projeto Portinari, criado em 1979.
Guerra e Paz retoma o mesmo posto de honra à entrada do grande anfiteatro da Assembleia Geral da ONU. Os painéis – medindo 14 metros de altura e 10 de comprimento cada um – saíram dali em 2010, quando o prédio da ONU começou a passar por uma longa reforma.
A maior e última grande obra criada por Portinari antes de morrer foi levada ao Brasil para restauro e só então gente como a que ele sempre retratou em seus quadros pôde conhecê-la. Numa turnê pelo Rio, São Paulo, Belo Horizonte e estendida também a Paris, mais de 400 mil pessoas fizeram filas para vê-la de perto.
Foi uma surpresa o bom estado dos painéis, levando-se em conta que eles ficaram meio século expostos diretamente ao sol numa área envidraçada. O que havia é o que os restauradores chamam de “chancis”, uma aparência leitosa, semiopaca, provocada pela reação do ultravioleta sobre o branco, que é a cor mais usada na mistura das tintas. “As cores voltaram a vibrar e os vidros do salão agora têm película de cobertura para proteção da obra”, diz João Cândido.
Responsável pelo que chama de “um videodiscurso” a ser apresentado na reinauguração do mural, a atriz e diretora Bia Lessa tomou o tema representado ali por Portinari para chamar atenção “à obrigação do homem criar um projeto de paz”. Para compor a narrativa do vídeo e reforçar a mensagem expressa por Portinari, Bia escolheu poemas e outros textos de autores de diferentes épocas e países. Entre eles estão T. S. Eliot, Samuel Beckett, Walt Whitman, Hannah Arendt, Eduardo Galeano, Darcy Ribeiro e Paulo Mendes da Rocha.
João Cândido conta que, ao ver as imagens de desamparo dos refugiados que formam atualmente a maior onda migratória na Europa desde a 2ª Guerra Mundial, lembrou do que disse seu pai ao participar de uma conferência sobre o sentido social da arte, realizada em Buenos Aires, em 1947: “As coisas comovedoras ferem de morte o artista e sua única salvação é retransmitir a mensagem que recebe”.
Para Portinari, não haveria na natureza “algo que grite mais alto ao coração do que as guerras, as tragédias provocadas pelas injustiças, pela desigualdade e pela fome” – motivos recorrentes na própria obra dele. Em 1952, o pintor foi incumbido de criar o mural que seria presenteado à ONU pelo governo brasileiro. E escolheu como tema o que lhe gritava ao coração.
Embora com o corpo já envenenado pelo chumbo das tintas que usava e, por ordem médica, estivesse proibido de pintar, durante quatro anos Portinari trabalhou na elaboração de 180 estudos, esboços e duas maquetes para os painéis (uma delas está no Itamaraty, em Brasília, e a outra pertence a um colecionador paulista). O mural foi produzido por partes num estúdio da hoje extinta TV Tupi, no Rio. A impossibilidade de avaliar a composição por completo desesperava Enrico Bianco, aluno e principal assistente de Portinari que, conforme ele contou num depoimento, apenas ouvia do pintor: “É só seguir a maquete”.
Porão
Em 5 de janeiro de 1956, os painéis foram entregues a Macedo Soares, então ministro das Relações Exteriores, para serem doados à ONU. Um grupo de artistas e intelectuais pediu ao Itamaraty para que eles fossem expostos antes de serem despachados para Nova York. Montado no palco do Teatro Municipal do Rio, o díptico que nem Portinari ainda tinha visto por inteiro foi conhecido por milhares de pessoas.
Logo depois, os painéis foram enviados à ONU. Mas só foram inaugurados um ano e meio mais tarde. O jornal The New York Times de 23 de junho de 1957 noticiou o descontentamento brasileiro com o destino do presente que o País deu à ONU, com custo calculado em US$ 45 mil. Logo abaixo da notícia saiu nota da ONU informando que o atraso na exibição da obra de um dos mais respeitados modernistas brasileiros era uma questão de dinheiro.
“Os gigantescos murais precisam ser adequadamente montados e as estimativas indicam que o custo será de no mínimo US$ 20 mil”, explicava a organização. Os painéis estavam encerrados em dois imensos caixotes no porão do prédio da ONU. Em 6 de setembro de 1957 o mural Guerra e Paz foi finalmente entregue numa cerimônia oficial.
Por causa do seu envolvimento com o Partido Comunista, Portinari não foi convidado para a inauguração, sendo representado pelo chefe da delegação brasileira nas Nações Unidas, o embaixador Cyro de Freitas-Valle.
Como os painéis ficam numa área de acesso restrito no prédio da ONU, o Projeto Portinari planejou eventos que ocorreriam em áreas abertas da cidade, como a estação de trens Grand Central, a Times Square e a parte externa do Metropolitan Museum para que a reinstalação deles pudesse provocar a mesma reação de quando foram exibidos abertamente ao público no Brasil e na França. O custo seria em torno de R$ 6,5 milhões, valor igual ao que foi investido para a apresentação deles em São Paulo, segundo o diretor do Projeto Portinari.
Os painéis foram reinstalados na ONU em dezembro passado e a reinauguração foi adiada duas vezes à espera de patrocinadores para os eventos em torno dela. Mas nada pôde ser feito porque o governo federal e as empresas brasileiras que foram fontes de recursos para tirar as obras dos EUA quatro anos atrás “não tinham como colaborar por estarem às voltas com a crise econômica e política”, segundo João Cândido.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.