Muito além da imaginação

Há dois domingos escrevi sobre William Blake, escritor do século 18. Hoje é a vez de outro estranho, talvez mais estranho do século 20, embora o anterior tenha sido o século que maior número de escritores estranhos produziu. Basta citar Franz Kafka, Louis Ferdinand Celine, Yukio Mishima, Philip K. Dick (que relatava ao FBI perseguições imaginárias de comunistas), sem contar o excêntrico Jerome David Salinger.

Surpreende que alguém seja considerado mais estranho que esta turma. Howard Phillips Lovecraft foi. E como! A vida de Lovecraft parece roteiro de escritor de horror, caindo para o fantástico. O cara foi leitor precoce, com dois anos recitava e aos seis escrevia poemas. Aos dois anos seu pai foi internado num manicômio onde morreu cinco anos depois. Abalada com a perda do marido a mãe teve distúrbios mentais. A coisa não ficou pior porque o avô do escritor, Whipple, segurava as pontas. Mas
quando o velho morreu, as coisas ficaram feias. Aos 14 anos, para escapar da realidade, o escritor tentou suicídio jogando-se de bicicleta no Barrington River.

Aos 18 anos – em 1908 – Lovecraft teve crise nervosa tão profunda que largou os estudos para sempre numa vida reclusa. Com 24 descobriu o jornalismo que praticou de forma amadora. Certamente inspirado pelo avô que lhe ensinou latim e o introduziu na literatura gótica, somado aos seus intermináveis pesadelos, começou a escrever contos de horror, artigos e profusão de cartas, coisas que faria até morrer de câncer no intestino em 1937, aos 47 anos.

No meio do caminho, perdeu a mãe em 1921, se casou em 1924 com a ucraniana de ascendência judaica Sônia H. Greene e foi morar em Nova York. O casamento fracassou, a vida ficou difícil e ele voltou a Providence com as tias. Continuou a escrever. Depois da estreia como ficcionista em 1923 no periódico The Vagrant, Lovecraft
publicou apenas contos em revistas baratas (pulp fiction), especialmente Weird Tales, por certo período, até o editor Edwin Baird, que o admirava, ser substituído por Farnworth Wright que passou a botar defeito nos contos do escritor.

Ele ainda emplacou numa nova revista, Astouding Stories. Os títulos dos contos também eram estranhos. A cor que caiu do céu, Fatos relativos ao finado Arthur Jermyn e
família, Nas montanhas da loucura e Os gatos de Ulthar. Além destes, Lovecraft publicou um único livro com tiragem de 400 exemplares, dos quais metade foi destruída e o resto com erros e correções mal feitas deixou o escritor à beira de um ataque de nervos. O editor William L. Crawford, da pequena Visionary Publishing Company, fez péssimo serviço. Basta conferir um exemplar sobrevivente.

Bem ou mal a coisa saiu. O livro em questão é A Sombra de Innsmouth, cuja tradução por Guilherme da Silva Braga a editora Hedra lança no Brasil. O livro tem 90 e poucas páginas e foi escrito depois de o escritor entrar em conflito com editores que queriam coisas palatáveis para um publico numeroso e ignorante – coisas que vendiam, afinal era e ainda é o negócio dos editores: books for sale! O escritor refugou. Decidiu atender ao que chamou de seus ‘próprios critérios ficcionais’. É ambientado num lugar assustador que, num conto anterior, fora concebido na Inglaterra e no livro adquire forma definitiva em Massachusetts, perto de Ipswich e Rowley. Innsmouth é um vilarejo portuário em ruínas, que não consta de nenhum mapa -recurso usado em novelas de terror – e que guarda mistério tão profundo quanto às águas do oceano à sua frente. Neste lugar vaga uma estranha raça híbrida, metade humana e metade descendente de desconhecida criatura marinha com aparência de peixe e sapo.

Os moradores cultuam Hydra e Dagon, divindade filisteia que o escritor incorpora na chamada Mitologia de Cthulhu, que contém panteões de seres extra-dimensionais que reinaram sobre a Terra há milhões de anos e teriam, entre outras coisas, criado a raça humana. O narrador da história passa uma noite neste lugar depois de ouvir durante o dia histórias estranhas. No final do livro o narrador se descobre descendente de um sujeito da cidade e não resiste ao apelo de ir às profundezas do mar de encontro a sua raça ancestral. Lovecraft dizia que a emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo – e o medo mais forte e mais antigo é o medo do desconhecido. Uma frase e tanto. Pode-se acrescentar que o medo é a sombra que paira sobre a razão, empurrando o homem de volta ao código da idade das trevas. Obedecer, correr ou morrer.

Delírio? Não. Lovecraft foi influenciado por duas obras – de Frobert M. Price e Irvin S. Cobb -sobre seres humanos anfíbios habitando numa profundidade de oito quilômetros na costa do Atlântico. Certamente a história é também afetada pela aversão que o escritor tinha da miscigenação. Com base em sua extensa correspondência e em depoimentos de pessoas que o conheceram, é possível afirmar que Lovecraft era racista convicto. E não só. O escritor acreditava na superioridade ariana, admirava Mein Kampf – escrito por Adolf Hitler -, considerava negros um ‘bando de chimpanzés sebosos’, judeus um ‘bando de inchados com cara de rato’, polacos eram ‘camponeses odiosos’, latinos italianos e portugueses ‘pouco menos indesejáveis’ e gente de ‘baixo nível’. Sobrava para os franco-canadenses a quem chamava de ‘praga ruidosa’ e aos asiáticos, ‘mixórdia bastarda de carne mestiça fremente desprovida de intelecto, repulsiva aos olhos, ao olfato e à imaginação’. Nem um capitão nazista falaria tanto e melhor.

As demais raças e etnias com seus falos ameaçadores colocavam em cheque a pureza dos descendentes teutônicos. Não é preciso fazer esforço mental para concluir que
a crônica de Innsmouth pode ser lida como alerta para os danos da miscigenação racial ao segmento branco da espécie humana – todo mundo com cara de peixe e sapo. E o leitor apressado vai concluir que não há melhor lugar do mundo para as obras de Lovecraft que a lata de lixo. Engano. Elas não chegam a ser um panegírico. Ao contrário, podem ser lidas como histórias assustadoras – embora as idéias do escritor também sejam.

Além disso, preferências políticas e declarações absurdas de escritores e congêneres nem sempre afetam critérios artísticos – e suas obras. Caso contrário Celine,
Mishima. K. Dick, Ezra Pound, Salvador Dali e toda galeria de roqueiros do planeta ainda viva teria de ser incinerada. Desde que a obra se sustente e o escritor se limite a ruminar ideias, tudo bem. O impressionante é que com este prontuário, Lovecraft tinha tudo para ser ignorado depois da morte. Ser mais um que passou pelo planeta,
escreveu bobagens, falou mais ainda e morreu. Não foi o que aconteceu.

Amigos como August Derleth e Donald Wandrei fundaram a editora Arkham House com o principal objetivo de preservar e divulgar as obras do autor que a partir de sua morte passou a ter crescente prestígio no segmento da literatura fantástica a ponto de escritores como Jorge Luís Borges, Stephen King e Clive Barker admitirem a sua influência. Em seu Livro de Areia, Borges diz: ‘O destino que, segundo a fama, é inescrutável, não me deixou em paz enquanto não perpetrei um conto póstumo de Lovecraft, escritor que sempre julguei um parodista involuntário de Poe’. ‘É um dos pilares do horror moderno’, diz Barker. ‘Lovecraft permanece insuperado como o maior expoente do horror clássico no século 20′, pontifica King. Nada mal para quem não teve nenhuma publicação decente em vida.

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