Ocupação Laerte, a mostra instala desde sábado, 20, no Itaú Cultural (e que vai até 2 de novembro), atesta pelo menos duas coisas: uma, que o cartunista brasileiro Laerte Coutinho está agora no mesmo nível de ícones mundiais como Will Eisner, Joe Sacco, Robert Crumb, Jules Feiffer, Art Spiegelman e mesmo de alguns de seus mestres, como Henfil e Millôr; outra, que Laerte também se tornou, com seu trabalho, uma espécie de consciência ética de um país, um Grilo Falante de uma nação.
Pelo nível dos originais expostos, que remontam desde o início do cartunista (da revista sindical Balão, nos anos 1970, ao lado de Luis Gê, até trabalhos recentes, como Laertevisão, um inventário da memória), a exposição se impõe como uma espécie de lugar de peregrinação para todo artista gráfico que ambicione consolidar uma obra relevante.
Pianista, roteirista de cinema, teatro e televisão, ativista, ex-militante do Partidão, pai de três filhos, casado três vezes e atualmente transgênero militante há 10 anos: Laerte Coutinho é multiplataforma, mas é na sua própria capacidade de fazer uma autocrítica constante que reside sua maior força. A abrangência da exposição permite olhar a amplidão da natureza filosófica e política de sua obra.
Em 120 m² de espaço, num projeto expositivo em que o foco não é a descontextualização dos quadrinhos e das tiras (com eventual uso de mirabolantes recursos multimídias), mas a afirmação de sua importância como linguagem, o visitante vai encontrar desde desenhos que Laerte fez com 8 anos até um pequeno manifesto de sua sexualidade (cujo epílogo é uma reprodução de A Origem do Mundo, de Courbet).
É como se fosse um bombardeio de tiras, com técnicas diversas, como nanquim sobre papel, nanquim sobre offset e lápis. São cerca de 2 mil obras, entre elas um autorretrato do quadrinista dançando com o seu personagem Minotauro, exclusivo para a exposição. Do total de obras, cerca de 300 são originais, 400 são imagens digitais em tablets e há aproximadamente 1,5 mil impressas.
Do linchamento à publicidade, do Jornal Nacional à religião, do sexo ao racismo, da tortura ao onanismo: nas tiras reunidas por Ocupação Laerte (cuja curadoria é de Rafael Coutinho, filho do artista), o leque de assuntos abordados por ele espanta.
O percurso inicia com originais de obras como Os Palhaços Mudos, dos anos 1980. Passa pelos Piratas do Tietê (cujas tiras revelam um espírito de época, “E foram comemorar no Fasano com as meninas do La Licorne”), Deus e os personagens de relevo. Sua extensa galeria inclui ainda o super-herói Overman, o enigmático Homem-Catraca, o travesti Hugo/Muriel e a tira comunitária Los Três Amigos, em parceria com Angeli, Glauco e Adão Iturrusgarai.
Está lá uma fantástica parceria com Glauco, amigo morto barbaramente em 2010: a história de quando Geraldão recebeu a visita de Luma de Oliveira e Malu Mader – em busca de sexo.
Nascido em São Paulo, Laerte tem 63 anos e mais de 40 anos de carreira. Seu maior destaque, entretanto, veio nos anos 80, na atividade em publicações jornalísticas como Placar, IstoÉ, Estado e Folha de S. Paulo. Entre 1990 e 1992, editou e publicou 14 edições da revista Piratas do Tietê. Sua transformação tem sido objeto de debate constante, que ele encara com serenidade. “O objetivo dessa mostra nunca foi a compreensão ‘total’ do artista, tampouco desfazer esse novelo de lã. É uma edição ambiciosa dessa produção que mostra algo que nunca tive dúvida: Laerte é vários, e haverá outros”, diz Rafael Coutinho.
Em fase mais recente, até o artigo com que o tratam Laerte pede que seja mudado. “Quero ser enterrada de vestido, quero ser cremada”, disse Laerte, no programa de Antônio Abujamra. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.