Mostra em Paris reúne 100 obras de Marcel Duchamp

No dia em que Marcel Duchamp (1887-1968) comprou o famoso secador de garrafas no subsolo do BHV, bazar ainda existente em Paris, toda noção de trabalho artístico ficou problemática para o resto dos séculos. Mesmo muitos anos depois, só para dar poucos exemplos, Andy Warhol pediu a assistentes para fabricar os seus quadros. Arman fez trabalhos com tubos esmagados dos quais a tinta escorria porque ele queria mostrar que “o material tornava-se criação”. John Cage criou música com o acaso e o silêncio. Enfim, ninguém mais quis controlar nem prever o ato criador. E por quê? Porque com esse primeiro ready-made, Duchamp instaurou a escolha como a sucessora da elaboração mental.

Ready-made é o objeto de arte que nasce pronto, pois foi escolhido e designado como tal. Assim, cada peça escolhida por Duchamp era disposta de maneira que o seu significado utilitário desaparecesse sob um novo título e ponto de vista. Foi a sua forma de criar um pensamento novo tanto para esse secador de garrafas, quanto para o famoso urinol de louça que ele assinou R. Mutt e deu o nome de Fonte. Todos os seus objetos pretendem ser incorporados ao cérebro (enquanto memória) e não “admirados” nos museus.

Por esta razão, Duchamp sempre foi visto como um iconoclasta que multiplicou provocações e “matou” a pintura, colocando em xeque a própria natureza da arte.

Mesmo quando, em 1997, trouxemos a primeira grande exposição dele ao Brasil, para a 19.ª Bienal, o curador Arturo Schwarz insistiu em provar o “desejo de Duchamp de fugir da pintura” e a sua “antipatia pela tela, enquanto fundo”. Ora, a mostra Marcel Duchamp: A Pintura, mesmo, que reúne no Centro Pompidou, até 5 de janeiro, 50 quadros – além de 50 trabalhos de outros artistas com os quais Duchamp tece uma relação estética (Brancusi, Duchamp-Villon, Balla, Redon, Kandinsky, Dürer, etc.) – prova que esta é uma visão totalmente errônea.

Por intermédio de suas muitas referências e influências, até a gênese da mais hermética e complexa obra do século 20, O Grande Vidro (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), Duchamp na verdade não fez outra coisa senão reinventar a pintura. Esta é mais uma exposição esclarecedora que – como a retrospectiva de Niki de Saint Phalle – “reajusta” a história da arte, demolindo ideias feitas.

Duchamp foi, antes de tudo, pintor. E é justamente em seu trabalho pictórico que se pode descobrir a complexidade e a extrema coerência de toda a sua obra. Mesmo O Grande Vidro, declarado inacabado por ele – composto por dois painéis de vidro superpostos em que estão as suas imagens simbólicas – é, segundo a curadora, “a negação e a sublimação da pintura, ao mesmo tempo”.

O percurso, dentro de uma cenografia elegante, permite seguir a reflexão do artista e descobrir as fontes plásticas, técnicas, literárias e também as ciências óticas, mecânicas, físicas e ocultas onde ele foi beber. Desde desenhos de humor e teatro de marionetes, jogo de xadrez, até tratados sobre perspectiva, documentos antigos, filmes de Méliès, quadros de Cranach, o Velho e Manet – do impressionismo, ao cubismo e futurismo -, a rica mostra oferece as chaves de uma obra que teve quase tantas interpretações quantos são os campos de conhecimento.

Esoterismo, surrealismo, religião, simbolismo, poética mallarméana (na interpretação de Octavio Paz), psicanálise, filosofia e estética, são apenas alguns dos níveis de leitura aplicados. Duchamp está para a arte, assim como Freud, Wittgenstein e Cage estiveram para os seus respectivos domínios.

O fato é que o mestre, enxadrista e figura do dadaísmo, queria uma “pintura da ideia”, “conceitual”. Não só se perguntava como conceber uma obra que se adequasse à modernidade, mas revolucionava concepções além da arte – da linguagem e filosóficas mesmo – como a contradição, crença, permanência, multiplicidade, etc. Não rompia com a pintura, e sim com o “estatuto social de artista”.

Nesta espécie de xeque-mate, os maus intérpretes o acusam de iconofobia. Duchamp foi um artista de imagens, que ele adorava, e influenciou toda uma geração que desenvolveu outras imagens. Embora tivesse transtornado a ideia de contemplação formal e os atributos convencionais da pintura, foi uma espécie de mestre Zen para quem ela deveria estar “a serviço do espírito”. O abismo entre iconofóbicos e iconófilos existe desde os tempos de Bizâncio. Porém, só os amigos da pintura, como ele, puderam ser bons iconoclastas. Quem tem fobia por imagens, aniquila o que elas têm de melhor. Marcel Duchamp destruiu apenas o que elas têm de pior.

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