Assim como já havia ocorrido em 2018, a programação desta edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo bebeu na conturbada agenda política do País. Embates ideológicos, discursos de identidade e dívidas históricas voltaram a pautar a cena. Mas, assim como os conflitos sociais se acirraram, a tentativa da curadoria de abarcar o caos atual também foi mais enfática neste ano. Nem sempre, porém, a arte responde bem a nobres intenções.

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Para dar voz e forma ao mal-estar corrente, a mostra pautou uma série de espetáculos que buscaram tematizar, por exemplo, o retrocesso testemunhado nos recentes atos de censura a dois artistas: Wagner Schwartz, que sofreu um linchamento nas redes após a performance em que uma menina tocava seu corpo nu, e Renata Carvalho, a artista que foi diversas vezes proibida de apresentar O Evangelho Segundo Jesus, a Rainha do Céu, peça na qual vivia um Jesus Cristo travesti.

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Como resposta artística à reação conservadora, ambos já haviam criado Domínio Público, apresentado no último Festival de Curitiba. Agora, a MITsp coproduziu seus dois novos solos: Wagner pôde ser visto em A Boba e Renata criou Manifesto Transpofágico. A modernidade, de quem nos julgávamos herdeiros, está em crise. É a brutalidade que dá as caras e dita o novo ritmo.

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Se as atuais investidas contra a arte e os artistas – demonizados pelas hostes bolsonaristas – não passaram batidas, o olhar para heranças malditas e feridas não cicatrizadas também esteve presente. Ainda na linha de produções próprias, o evento investiu em Democracia, uma parceria com o Festival Santiago a Mil. Dirigida por Felipe Hirsch e com um elenco chileno, o espetáculo desdobra as contradições e perigos do sistema democrático. A partir de um teste de competências semelhante ao vestibular, faz-se uma crítica debochada à ideia de meritocracia e evidenciam-se os traumas deixados pelos anos da ditadura de Pinochet no Chile.

O triste legado dos processos de colonização também foi pauta de outra parcela da edição. Em O Alicerce das Vertigens, espetáculo do artista congolês Dieudonné Niangouna, a trajetória de dois irmãos tornou-se metáfora da história do país africano. Aqueles que foram silenciados através dos séculos, solapados pelas versões dos colonizadores, merecem voz. Está em jogo a violência como experiência formadora e organizadora do mundo. Mas o teatro não se faz apenas com palavras – não importa quão enfáticas elas sejam. A resposta aos discursos de ódio pode soar débil se aqueles que as motivaram não forem sublimados no momento da criação.

Ao longo dessa sexta edição, o desejo de se contrapor à maré reacionária – e resgatar os grupos minoritários que vêm sendo covardemente atacados – nem sempre resultou em espetáculos potentes. Exceção honrosa a essa impressão foi MDSXL. Assim como em boa parte da grade, fontes autobiográficas e práticas documentais foram utilizadas na construção da obra. O resultado alcançado pela atriz italiana, contudo, transcende tanto a reminiscência individual quanto as questões de gênero, tão em voga. Em uma espécie de palestra ritual, a intérprete conta de uma identidade impossível de ser rotulada como feminina ou masculina articulando texto, imagem e movimento.

Seria exagero dizer que as peças do suíço Milo Rau foram um ponto fora da curva desta edição. Nos três espetáculos selecionados, apresentaram-se episódios verídicos a partir de procedimentos do teatro documental. Questões urgentes da contemporaneidade estiveram em pauta: a intolerância, a pedofilia, a xenofobia, o lugar do colonizador. Mas Milo Rau – artista em foco deste ano – chamou atenção justamente pela forma incômoda com a qual lida com sua matéria-prima. Não é apenas o fato de serem peças sobre o nosso tempo o que mobiliza o público em A Repetição, Cinco Peças Fáceis e A Compaixão. Há o horror, o choque e o deslumbramento de estarmos diante de verdadeiras tragédias. Trabalhos em que o diretor ultrapassa a militância e os bons sentimentos para ser intrigantemente desagradável.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.