A vida de Iberê Camargo, cuja morte completou 20 anos no último sábado (09), se desenrolou como um de seus carretéis. Autodefinido como “homem a caminho”, o artista plástico maduro em nada havia mudado do guri nascido em Restinga Seca, no Rio Grande do Sul, porém, jamais se permitiu ser o mesmo. Seja a vivência em sua cidade natal, sua estada na Europa ou os dias em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, Iberê desatarraxou aquilo que o prendia e limitava – como homem ou artista – e construiu uma obra forte e profunda, que passou a ser afetada diretamente pelo trágico incidente ocorrido em 1980, quando matou um homem em legítima defesa.

continua após a publicidade

A tragicidade desse episódio – que parece retirado da novela O Estrangeiro, de Camus, – foi o ponto em Iberê começou a repensar a sua vida, chegando ao ponto de dizer que o estampido dos dois tiros que disparou jamais lhe saíram da memória. Mas como o próprio artista dizia, viver é andar, descobrir e conhecer. Portanto, essa cena mórbida foi usada como elemento de criação artística. “Questões como essa são ambiguamente relevantes no trato com a obra de um artista. Por um lado, tentam explicar os porquês da poética desse artista e por outro correm o risco de criar mitos por vezes desnecessários sobre a obra”, disse o professor e pesquisador Benedito Costa.

Mas a obra de Iberê se expande para além da problemática sobre o homicídio. Mesmo as paletas escolhidas pelos artistas sempre estarem pautadas entre as corres mais fortes e carregadas, a angústia de seu fazer artístico conseguiu transpor o resultado de sua pintura. “Sempre que vejo as obras de Iberê, não posso deixar de pensar num homem sombrio, num ser humano sombrio, de grandes questões, muito fortes, degladiando-se dentro dele”, comenta Costa.

Divulgação
Pintura da série ‘Ciclistas’.

Para o artista plástico Nino Ferreira, o tom carregado de Iberê é justamente o seu ponto mais importante. “Ao trazer a inquietação do mundo moderno para pintura brasileira juntamente com seus questionamentos e embates existenciais, Iberê pensava mundo com seus pincéis”, explica.

continua após a publicidade

São Preto e Branco

A inquietude que tomava conta de Iberê Camargo também o colocava como chave de toda uma geração. Em 1954, indignado com os altos impostos sobre as tintas importadas, o artista resolveu que a única forma de protestar contra a arbitrariedade tributária seria a sua própria arte.

continua após a publicidade

Naquele ano, Iberê organizaria o São Preto e Branco, mostra criada para apresentar trabalhos que usassem somente as duas cores como elementos na tela. “O Salão Preto e Branco significa nossa luta pela sobrevivência. No tocante a seus resultados, precisamos acreditar em alguma coisa, ainda que seja no absurdo. A vitória é essencial para a classe”, desabafou Iberê em depoimento ao jornal “Correio da manhã”.

Como resultado, as taxas sobre as tintas importadas seriam reduzidas e os artistas poderiam livrar-se dos exorbitantes encargos sobre o produto.

Literatura

 O desejo de dar ao mundo todas as formas do sentimento carregava fez com que o gaúcho extrapolasse o limite da arte e se desdobrasse também pela literatura. Mesmo empoeirado pela fraca memória brasileira, o trabalho literário de Iberê é um importante complemento de sua obra plástica. Os livros Gaveta dos guardados, um apanhado das lembranças do artista, e No Andar do tempo, composto por textos de ficção, figuram como a produção literária mais importante de Iberê.

Divulgação
Iberê em seu estúdio.,td>

Legado

Apesar de toda a sua importância para as artes brasileiras, ele ainda se mantêm distante do grande público, mas ainda assim tem seu nome estampado no panteão. “Talvez Iberê Camargo não seja uma unanimidade, mas seu nome está sempre presente entre ‘os grandes’ do século XX”, avalia Benedito Costa.

Para o pesquisador, no entanto, a questão ainda é mais extensa que a figura de Iberê e reflete todo o panorama artístico do Brasil. “Valeria lembrar também que a arte brasileira (seja na pintura, na literatura, na dança, etc.) tem dificuldade de penetração nos grandes mercados de arte”, reflete o pesquisador.

Para Nino Ferreira, o maior legado deixado por Iberê está também na forma de pensar a arte e a vida. “Acho que os artistas que tiveram oportunidade de experiência com a obra de Iberê muito provavelmente levaram consigo a inquietação não só estética, mas a da própria alma do artista”, disse.

Acima de tudo, o tempo tem dado a Iberê o reconhecimento que talvez tenha faltado em vida. A prova disso é que museus de todo o Brasil – e algumas instituições do mundo – possuem obras do artista em seu acervo. Atualmente, a mostra “Acervo em aberto”, em cartaz no Museu Oscar Niemeyer, conta com dois quadros de Iberê. Vale – e muito – a visita.