Manchester era, assim como a Praga de Kafka, uma “mãezinha de garras”, uma cidade-filha da Revolução Industrial e que se transformaria – justamente por conta das chaminés fumegantes – um lugar cinza e pouco acolhedor. Com um pano de fundo com este, não é difícil de compreender, ou pelo menos entender, o que acontecia com Ian Curtis, vocalista do Joy Division, cuja morte completa 34 neste domingo (18).

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Dono de uma personalidade forte, Curtis nasceu em Stretford, cidade vizinha a Manchester, em 15 de julho de 1956, e ficaria famoso não só pelas suas letras angustiadas e repletas do sentimento de isolamento, mas também pela icônica dança – em parte fruto da sua timidez e resquício das crises epiléticas que, não raras vezes, aconteciam em cima do palco.

Mas a densidade lírica de suas músicas não ficava escondida atrás de seu vocal barítono – algo que parecia justo a alguém condenado a cantar que o amor é capaz de separar um casal. Ian nunca foi uma figurinha carimbada na cena punk da cidade, não era visto com frequência em shows – ao contrário dos seus futuros companheiros de banda, Peter Hook, Stephen Morris e Bernard Sumner -, embora fosse um devoto de David Bowie, Iggy Pop, Velvet Underground, The Who e Rolling Stones.

Sua personalidade tempestuosa o levaria se casar muito cedo, aos 19 anos – e que o culminaria ser pai aos 22. Deborah Woodruff e Ian se conheceram na adolescência, quando ela namorava Terry, o melhor amigo de Curtis. A relação deles se estenderia muito mais do que o amor juvenil. Deborah, em entrevista ao jornal britânico The Guardian em 2005, afirmou que Ian a inspirava. “Ele me ensinou que se você coloca uma música para tocar, precisa sentir e escutá-la. Você não deve se levantar ou ir lavar louça. Apenas escute”, disse.

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Não era difícil de perceber que Ian vivia de uma forma diferente: estava tudo nas letras que escrevia. Ainda assim, o relativo sucesso do primeiro disco do Joy Division, Unknown pleasures (1979), não livrou o cantor dos bicos, como limpar o estúdio em que era gravado o primeiro disco do Durutti Column.

Desordem

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Como se a epilepsia não fosse o suficiente, o envolvimento de Ian com as drogas, a pressão pelo sucesso do Joy Division e o tédio de um casamento burocrático o levariam a um turbilhão emocional que seria desaguado em um caso extraconjungal – que mais tarde também se transformaria em um fardo a ser carregado.  

A força da relação entre Ian e Annik, a amante, pode ser definida de duas formas: a) enquanto Ian tinha na relação a o escape que nem mais as drogas e a música lhe traziam; b) Annik vivia ali a intensidade de sua primeira história de amor. “Eu encontrei um ser raro, esquisito, educado. Eu sentia que ele estava sofrendo, era frágil”, revelou em uma de suas raras entrevistas.

Entretanto, nem sempre as explosões de Ian tinham um caráter negativo. O Joy Division só seria contratado pela Factory após o dono da gravadora, o apresentador da Granada TV Tony Wilson, receber uma carta pouco elogiosa do letrista. A audácia funcionou: além de a banda ser convidada para se apresentar no programa de Wilson , o “Granada reports”, em 20 de setembro de 1978, como também foram convidados a assinar com a Factory.

Divulgação
Performance no palco se tornou icônica.

Coração e alma

Quando o acobreado clipe de “Love will tears us apart” apareceu na televisão, em junho de 1980, Ian Curtis já estava morto há um mês e o Joy Division estava em vias mudar de nome para New Order e adicionar Gillian Gilbert, namorada de Morris, ao grupo. O segundo e derradeiro álbum seria lançado em julho. Closer seria um sucesso, atingindo o 6° lugar nas paradas inglesas.

Para o cantor britânico Morrissey, “o Joy, Division não era nada antes da coisa (o suicídio)”. A afirmação não é bem verdade, já que a banda estava com uma turnê marcada nos EUA e embarcaria no fatídico 18 de maio. Além disso, a banda já estava conseguindo um séquito considerável de fãs, que se vestiam ao modo alemão da década de 1920 e 1930.

O Joy Division – e posteriormente o New Order – seria acusado de simpatia ao nazismo. As suspeitas começaram quando o grupo ainda se chamava Warsaw (Varsóvia) que, além de de fazer referência à música de David Bowie “Warsawa”, do álbum Low, eram também uma ligação com a Batalha de Varsóvia, conflito que aconteceu depois que os exércitos de Hitler invadiram a Polônia, em 1939.

Quando o quarteto mudou o nome da banda a controvérsia não havia acabado. Joy Division, ou divisão do prazer, era o setor em que ficavam as mulheres judias destinas a ser usadas como prostitutas pelos soldados alemães. A referência foi tirada do livro The House of dolls, de Ka-tzetnik 135633, prisioneira em um campo de concentração nazista. Outra “prova” contra a banda seria o grito inicial  “3-5-0-1-2-5, go!” na música “Warsaw”, que abria o EP An ideal for living, em 1978, que corresponde ao número de Rudolf Hess, confidente de Hitler, quando preso.

Jogo de sombras

Ian Curtis povoa a história do rock como um espectro, como se nunca realmente estivesse ali. Por isso, quando o fotógrafo e cineasta Anton Corbijn recriou a história do vocalista no longa Control, 2007, que traz Sam Riley no papel principal, não usou cores – ele preferiu compor o filme em preto e branco, retratando com maior sutileza tanto o ambiente físico que cercava o cantor quanto o seu estado de espírito.

Músicas como “She’s lost control”, “Atmosphere”, “Dead souls” e “Disorder” só poderiam ter saída de uma mente iluminada e realista, algo que tem parecido cada vez mais distante da música contemporânea.