Nelson Sargento morava no Salgueiro e, aos dez anos de idade, desfilou numa escola de samba do morro, a Azul e Branco. Ou seja, não fossem as reviravoltas que a vida dá, sua história teria tido cores bastante diferentes. O enredo começou a mudar quando ele tinha 12 anos e se mudou para outro morro da zona norte do Rio de Janeiro, o da Mangueira.
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Morto na manhã desta quinta (27), aos 96 anos, segundo comunicou sua assessoria de imprensa –ele estava internado com Covid desde a sexta (21)–, Nelson se tornaria, nas décadas seguintes, uma das figuras mais representativas da Estação Primeira de Mangueira. Ao completar 90 anos, em 2014, era o presidente de honra da verde e rosa.
A mudança de endereço se deu após a união de sua mãe, Maria Rosa da Conceição, com o português Alfredo Lourenço, morador da Mangueira. O padrasto lhe abriu dois mundos: o da pintura e o do samba.
Alfredo era pintor de paredes. Nelson aprendeu a ser, mas mostrou com o tempo ter talento também para pintar quadros. Construiu uma consistente obra de, como se diz, arte naïf.
E Alfredo era compositor. Merecedor de respeito por parte dos bambas mangueirenses, entrou de vez para a história da escola ao compor para o Carnaval de 1955, em parceria com o enteado Nelson, um dos mais belos sambas-enredos já feitos: “Cântico à Natureza”, mais conhecido como “Primavera”.
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“Oh, primavera adorada!/ Inspirada de amores/ Oh, primavera idolatrada!/ Sublime estação das flores”
Para Nelson também virar um compositor respeitado, foi fundamental conviver com os veteranos do morro, como Carlos Cachaça, Saturnino, Aluisio Dias (que o ensinou a tocar violão), Babaú e, sobretudo, Cartola.
“Cartola não existiu, foi um sonho que gente teve”, ele gosta de repetir.
Virou guardião da memória do mestre. Guardava na cabeça as músicas que Cartola descompromissadamente fazia. Completou várias, transformando-se em parceiro do compositor mais importante da Mangueira.
O papel de depositário das histórias da escola e do morro ele nunca deixou de exercer. É, por exemplo, um dos autores do livro “Um Certo Geraldo Pereira”, sobre outro grande mangueirense.
Foi por ter servido no Exército entre 1945 e 1949 que Nelson Mattos passou, tempos depois, a ser conhecido no samba como Nelson Sargento, alusão à patente que alcançou.
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Mas conhecido de fato ele se tornou a partir da década de 1960. Primeiramente, em 1964 e 1965, cantando no Zicartola, o restaurante de Cartola e sua mulher, Zica.
Logo em seguida, entre 1965 e 1967, participando do histórico espetáculo “Rosa de Ouro”, dirigido por Hermínio Bello de Carvalho e ao lado de Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho e Anescarzinho.
Com essa turma e alguns outros, integrou grupos que marcaram aquela época, como A Voz do Morro e Os Cinco Crioulos (neste, com Mauro Duarte no lugar de Paulinho da Viola), e projetos como o musical “Mudando de Conversa”.
Aos poucos seu trabalho de compositor foi sendo gravado. Paulinho esteve entre os primeiros e principais intérpretes. Em 1971, interpretou “Minha Vez de Sorrir” e, em 1972, “Falso Moralista”, samba em que Nelson mostra seu lado de cronista bem-humorado, o mesmo que fica explícito em outra de suas músicas, “Falso Amor Sincero”.
“O nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama/ E eu finjo que acredito”
Sucesso maior veio em 1978. No disco “De Pé no Chão”, um dos mais importantes da cantora, Beth Carvalho lançou “Agoniza Mas Não Morre”. Para além de sua beleza, o samba de Nelson cativou muita gente por falar da defesa da cultura nacional num momento em que o Brasil iniciava sua reabertura política e, portanto, sua reconstrução como país.
“Samba/ Inocente, pé no chão/ A fidalguia do salão/ Te abraçou, te envolveu/ Mudaram toda a sua estrutura/ Te impuseram outra cultura/ E você nem percebeu”
O impacto dessa música abriu uma nova porta para Nelson.
Em 1979, ele foi convidado para gravar o seu primeiro disco solo. Já tinha 55 anos. “Sonho de Sambista”, o LP, cumpriu a função de apresentar o compositor de “Agoniza Mas Não Morre”, “Falso Moralista”, “Falso Amor Sincero”, “Minha Vez de Sorrir” e “Cântico à Natureza”, todas incluídas no repertório.
Mas não lhe permitiu engrenar uma carreira de cantor, salvo em shows esporádicos. O disco solo seguinte só veio em 1986 e, em grande parte, graças ao empenho de um produtor japonês, Katsunori Tanaka. “Encanto da Paisagem” era um trabalho quase todo de inéditas, entre elas uma “Homenagem ao Mestre Cartola”.
Ao lado de Elton Medeiros e do grupo Galo Preto, ele ainda fez um CD dedicado ao mestre com carinho: “Só Cartola”, gravado ao vivo em 1998.
Em 2001, gravou outro CD de inéditas, “Flores em Vida”, significativo a começar pelo título, citação do samba “Flores em Vida para Nelson Sargento”, feito por Moacyr Luz e Aldir Blanc. É uma referência ao verso “Me dê as flores em vida”, de “Quando Eu me Chamar Saudade” (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito).
Pode-se afirmar que Nelson Sargento recebeu, sim, as flores em vida, sendo aclamado como compositor, personagem histórico da Mangueira, líder entre os sambistas.
Seu carisma também foi reconhecido. Fez participações em filmes como “O Primeiro Dia”, de Walter Salles, e “Orfeu”, de Cacá Diegues, e ganhou um documentário com o seu nome, dirigido por Estevão Ciavatta.
Mais gente passou a desfrutar de seu humor, constatável em histórias como a indicação que ele dava a quem queria visitá-lo no alto do morro da Mangueira, na área conhecida como Chalé: “Se virar o morro de cabeça para baixo, minha casa é a segunda, à esquerda de quem sobe”.
Parte de seu robusto baú de inéditas foi mostrada no CD “O Samba da Mais Alta Patente”, lançado em 2012 e escolhido o melhor disco de samba da temporada pelo Prêmio da Música Brasileira.
“Sargento apenas no apelido”, brinca a letra de Aldir Blanc feita em sua homenagem, deixando claro que ele é um artista com muitas estrelas no peito.