Morre Elia Kazan, cineasta que colaborou com o macarthismo

São Paulo – No livro com a entrevista que deu a Michel Ciment, Elia Kazan diz no fim algo muito forte. “Não fiz tudo o que gostaria, não gosto de tudo o que fiz, mas aqui estou eu, com meus defeitos”. Queria ser avaliado só pelos filmes que fez a partir de Viva Zapata!, para ele os únicos que contavam.

Entre os anteriores encontram-se A Luz É para Todos, que lhe deu o Oscar em 1947, e Uma Rua Chamada Pecado, que adaptou de Tennessee Williams, em 1951. Mas ele considerava o filme sobre o revolucionário mexicano, de 1952, o verdadeiro marco zero de sua obra, uma das mais extraordinárias do cinema americano e mundial. Elia Kazan morreu domingo, aos 94 anos.

Ao contrário de Billy Wilder, que virou uma rara unanimidade, foi sempre motivo de discórdia. Há quatro anos, Kazan foi homenageado pela Academia de Hollywood com um Oscar honorário, por sua carreira. Kazan não foi vaiado, como se temia que fosse, mas poucos se levantaram e a maioria sequer o aplaudiu.

Essa hostilidade tem a ver com um episódio do começo dos anos 50, quando Kazan aceitou colaborar com o macarthismo, entregando os nomes de alguns comunistas ao Comitê de Atividades Antiamericanas do Senado, presidido pelo senador McCarthy.

Protesto

Ele já era um grande nome do cinema. Outros – John Huston, Humphrey Bogart -resistiram à pressão do comitê. Ele dedurou em protesto contra os rumos que tomara o Partido Comunista Americano, cujos quadros integrou. Abominava o stalinismo. Quando fez seu retrato do revolucionário em Zapata!, o personagem que saiu era trotskista. Os nomes que Kazan entregou já eram conhecidos. Sua delação foi muito mais simbólica. Ele plantou (e colheu) ódio. Reagiu com cólera. Muitos atores e diretores que aceitaram colaborar com o macarthismo se destruíram como artistas e até como indivíduos.

Armadura moral

O cineasta transformou a delação numa impressionante armadura moral. Seus filmes se tornaram cada vez mais críticos do estilo americano, como se ele quisesse deixar claro que não delatou para ganhar pontos em Hollywood. Por isso, considerava os filmes posteriores a Zapata! os que melhor o expressavam, os únicos pelos quais gostaria de ser lembrado. E acrescentava que eram uma espécie de cartão de visita: “Aqui estou, tal como sou. Pensem o que quiserem, mas me avaliem pela obra. Quem tem de gostar da minha vida sou eu”.

Da Broadway ao purgatório

Elia Kazan chegou a Nova York aos 4 anos, depois de ter nascido em Constantinopla, filho de pais gregos. Bem jovem, voltou-se para o teatro, primeiro como ator. Nos anos 40, como diretor, virou uma das estrelas da Broadway, com montagens de autores contemporâneos e clássicos que entraram para a história. E tornou-se comunista. Kazan gostava de situar as origens do seu comunismo no período em que estudou em Williams, tentando integrar-se ao mundo anglo-saxão. Sentia hostilidade pelos privilégios e até pela beleza daqueles wasps (brancos, anglo-saxões e protestantes), que desfilavam sua arrogância perante os outros – e o jovem Kazan era um desses outros.

Nos anos 30, integrou-se ao Group Theatre, cujos quadros eram formados predominantemente por esquerdistas. Lá, desenvolveu uma amizade que foi fundamental em sua vida, com Lee Strasberg. Em 1947, fundaram o Actor?s Studio. E naquele ano Kazan ganhou o primeiro Oscar.

Enfant terrible

Quando chegou a Hollywood, ostentava a reputação de enfant terrible da Broadway, onde montara A Morte do Caixeiro-Viajante e Um Bonde Chamado Desejo. Os primeiros filmes tratavam de temas polêmicos: o anti-semitismo em A Luz É para Todos, o racismo em O Que a Carne Herda (1949). E então veio a fissura do episódio com o macarthismo, em relação ao qual Kazan teve sempre uma atitude ambivalente. Reconhecia que dedurar é algo repugnante, mas foi uma reação ao que a União Soviética representava, com o aval dos comunistas americanos, fiéis à linha de Moscou. A agressão imperialista na Coréia, as perseguições a artistas, os campos de reeducação, o Gulag. Kazan fez o que fez para ser contra. E deixou claro, no próprio depoimento ao comitê, que era contra aqueles direitistas.

Quando o sucesso é insuficiente

“Não gosto de tudo o que fiz, não fiz tudo o que gostaria”. Poderia ser seu epitáfio. Os filmes a partir de Viva Zapata! formam um bloco de notável coerência, mas não exibem todos a mesma qualidade. Há mesmo um filme ruim, Os Saltimbancos, sobre a fuga de um circo da antiga Checoslováquia. Foi o filme que pôs Kazan na corda bamba. Ali, logo após a delação, ele esteve a ponto de perder-se, tornando-se um anticomunista vulgar.

Sindicato de Ladrões, que lhe deu o segundo Oscar, em 1954, ostenta a fama de fazer a apologia da delação, mas é muito mais complexo. Por meio de Terry Malloy (Marlon Brando, no papel que lhe deu o primeiro prêmio da academia), Kazan exorciza sua culpa e constrói uma obra poderosa.

James Dean despontou em 1955, na parábola bíblica de Vidas Amargas, quando Kazan se voltou para o livro de John Steinbeck – e para a velha história de Caim e Abel. O diretor começa a liberar nesse filme o sopro lírico que vai marcar também Rio Violento, de 1960, e Terra do Sonho Distante. Não por acaso, os três compõem o que muitos críticos consideram uma trilogia sobre a América. Entre eles, em 1961, Kazan fez sua obra-prima – Clamor do Sexo, com Natalie Wood e Warren Beatty como jovens enamorados, cuja relação é impedida pelos respectivos pais. Ela pira e, anos mais tarde, eles se reencontram. Olham-se nos olhos e seguem cada um seu caminho.

Todo filme de Kazan a partir da delação, trata da segunda chance, mas o tema que percorre e unifica a obra é o da natureza humana que se recusa a ser domada ou reprimida – e a metáfora é a represa de Rio Violento. Kazan, por esta época, já se analisava, pois, como confessou a Michel Ciment, não lhe bastava o reconhecimento como diretor de teatro e cinema. Era consumido por uma náusea, um desgosto, uma fúria, o sucesso não significava nada para ele.

A análise aprofundou o autoconhecimento, mas os demônios ele só começou a apaziguar quando, além de diretor, tornou-se escritor. Escreveu uma bela autobiografia em que tudo é excessivo: a recriminação, a ânsia revelatória, o fluxo de detalhes, que mistura o escabroso e o esclarecedor sem omitir nada.

Seu escritor preferido… Ele gostava de dizer que admirava Dostoievski e invejava Chekhov. Ninguém foi mais fundo do que Dostoiévski na análise dilacerada do crime e do castigo, mas Kazan invejava Chekhov porque o conteúdo de suas obras, como dizia, era tão bem escolhido e condensado. Kazan talvez tenha vivido (e morrido) como um personagem de Dostoiévski.

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