Morreu, aos 92 anos, o cineasta, escritor e jornalista francês Claude Lanzmann, autor de Shoah, o chamado “filme definitivo” sobre o Holocausto.
No ano passado, na Mostra de cinema de São Paulo, foi apresentado o que acabaria sendo a última obra de Lanzmann, o memorialístico Napalm. O filme trata de uma lembrança de mocidade do diretor, quando, em uma de suas inúmeras viagens, manteve um affair com uma moça coreana. Ocorre que Lanzmann ficou doente durante uma viagem ao país e foi atendido num hospital. Inevitavelmente, caiu de amores por sua enfermeira e o filme é o relato dessa história político-amorosa, com um detalhe inesperado para o público.
Persona controversa da intelligentsia francesa, Lanzmann lançou em 2009 seu livro de memórias “A Lebre da Patagônia” (aqui publicado pela Companhia das Letras em 2011), na qual fala sobre seus filmes, viagens, e, claro, amores espalhados pelo mundo. Entre seus relacionamentos, aquele que ficou mais famoso, com a escritora e filósofa Simone de Beauvoir, que manteve com Jean-Paul Sartre o mais famoso casamento aberto do século 20. Aliás, a foto de capa do seu livro de memórias ostenta uma bela foto da trinca – Lanzmann, Simone e Sartre no Egito, tendo por fundo a Esfinge de Gizé. Lanzmann e Simone moraram juntos de 1952 a 1958. Foi o grande amor de sua vida, declara o cineasta.
Nos obituários franceses, destacam-se essas qualidades (ou defeitos) pessoais do personagem. Formidável em sua força e energia, egoico, polêmico, brigão, admirador de si mesmo e dono de imenso talento, inclusive para a autopromoção.
No entanto, ninguém discute a importância de Shoah, a obra incontornável sobre o grande crime do século 20, o extermínio de milhões de judeus pelo regime nazista. São nove horas e meia de duração, uma coleta e exposição minuciosa de dados sobre o maior extermínio programado da história da humanidade.
Quando lançado, em 1985, Shoah deixou o público estupefato por sua potência. Mesmo assim foi criticado, em sua metodologia, por historiadores. Lanzmann rebateu, dizendo que o filme era longo e duro porque colocava na tela a verdade sobre os fatos, sem edulcorá-los como costumavam fazer os historiadores. Era o horror em estado bruto, pode-se dizer assim.
Lanzmann voltou ao tema, ou a temas paralelos em outras ocasiões, como em Sobibor, 14 de outubro de 1943, 16 horas (!) sobre o heroísmo do levante de judeus presos no campo de concentração que dá nome ao filme. Em Rapport Karski ele transcreve a entrevista com o resistente polonês Jan Karski, mandado aos Estados Unidos para pedir ajuda ao presidente Roosevelt. O filme registra a indiferença do presidente norte-americano em relação à sorte dos judeus europeus. Em 2013, aborda um tema dos mais indigestos, focando a colaboração de alguns judeus com o nazismo, em Le Dernier des Injustes (O Último dos Injustos), retrato de Benjamin Murmelstein, dirigente de um conselho judaico acusado de colaboração.
Personagem polêmico e pantagruélico em seu gosto pela vida, Claude Lanzmann deixa Shoah como legado definitivo. Mas há muito mais a vasculhar em sua vasta obra, tanto cinematográfica quanto literária. Era um titã imperfeito. Um gigante que colecionou admiradores e desafetos, na mesma proporção. Mas poucos, hoje, colocam em questão esse monumento cinematográfico que é Shoah. A Videofilmes, do Instituto Moreira Salles, lançou no Brasil uma versão integral do filme.
Por ocasião do lançamento, houve um debate sobre o filme com participação dos cineastas João Moreira Salles, Eduardo Coutinho e Eduardo Escorel.