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O que vem a ser o romance? O nosso passeio conceitual pode começar por Stendhal. Para o artífice de O vermelho e o negro, ele nada mais é do que un miroir que se pròmene sur une grande route. Um espelho que passeia pela estrada real: feliz metáfora. Mas ela apenas tangencia (de leve) a intrínseca realidade da forma romanesca. Já o crítico húngaro Georg Lucáks, um dos maiores do século vinte, é mais penetrante. Na sua concepção maiúscula, o romance é a forma dialética do épico, a forma da solidão na comunidade, da esperança sem futuro, da presença na ausência, a que melhor condensa o choque entre o homem e o mundo, entre o indivíduo e a sociedade, entre o ser e o existir. Como se vê, o aprofundamento analítico é mais nítido e perceptível na visão lucáksiana, embora ela se situe também num patamar inequivocamente metafórico.

Por sua vez, Kundera, o mestre de A insustentável leveza do ser, numa entrevista ao Le Monde parisiense, com a sua tradicional ironia, prenhe de ambigüidade semântica, tinha oportunidade de declarar: "O que é o romance? É tudo aquilo que o autor afirma ser romance…".

Data venia aos três ilustres nomes acima citados, e ainda que eu nada tenha contra ironias e metáforas, darei também o meu ponto de vista sobre a matéria. Procurando ser apenas um pouco mais objetivo. Entendo por romance a forma ficcional escrita em prosa (que pode até mesmo ser, e é, nos mais altos monumentos romanescos, poética, quando não poesia em prosa) narrando uma sucessão de acontecimentos, num território com determinadas coordenadas espaço-temporais. Esses acontecimentos poderão ser inventados ou reais. Ou mesmo fantásticos, oníricos. O fundamental é a unidade orgânica e o desenvolvimento da estrutura narratológica, sob pena do romance ser novela. (As diferenças que separam as duas formas literárias irmãs são sutis. Não cabe enunciá-las ? e muito menos aprofundá-las ? aqui e agora.)

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Note-se, antes de mais nada, que mais importante do que a ação, a trama, a intriga, o enredo, a mecânica peripecial, é o modo como o romance é escrito. Assim, a prosa, a linguagem, o estilo, são decisivos para que a narrativa pretensamente romanesca se torne de fato romance, produto literário, realidade estética autônoma, auto-suficiente. Embora eu não ignore que a forma já é conteúdo ? e vice-versa ?, ninguém ousará negar, contudo, que reside no aspecto formal a possível grandeza do romance. É na superestrutura estilística, ao nível dos significantes e dos significados ? e não na infra-estrutura representada pelo conteúdo, corporificado na ação, que pode até ser puramente mental, na ginástica subjetiva da memória ? que reside aquela quidditas que faz do romance obra de arte, com os seus diversos graus ou níveis qualitativos. Pois é do verbo demiúrgico ? e só dele ? que o romance retira todas as suas potencialidades estéticas. E é dele que extrai a sua dimensão e o seu valor, numa perspectiva de caráter axiológico. Tornando-se mundo em equação. Equacionado pela palavra.

Há inúmeros gêneros ou tipos de romances. A começar por aqueles que vicejaram e floresceram em plena Idade Média: o pastoril, o picaresco e o de cavalaria. Cujos arquétipos podem ser apontados, pela ordem, no Menina e moça, de Bernardim Ribeiro, no Lazarillo de Tormes, provavelmente de Diego Hurtado de Mendoza, e no Amadis de Gaula, talvez de Vasco Lobeira. Viriam depois os diversos gêneros que enriquecem a modernidade (não equivalente, aqui, a modernismo). Tendo por marco inicial o D. Quixote cervantino, espécie de anti-romance de cavalaria, sátira e paródia do gênero, em cujas páginas peregrinam duas figuras arquetípicas, imortais: o Cavaleiro da Triste Figura e seu fiel escudeiro Sancho Pança. Montados, um no burro, outro no Rocinante, ambos personificam de modo magistral o perpétuo combate, no território do homem, entre o sonho e a realidade, no cenário desolado da Mancha, perfeito símile do mundo. Temos aqui o primeiro e, quiçá, o maior romance moderno.

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Quais os gêneros que vêm depois? A nominata, por certo incompleta, é longa: o sentimental e o gótico, o fantástico e o romântico, o realista e o naturalista, o neo-realista e o psicológico, o social e o político, o realista-socialista e o roman fleuve, o romance-ensaio e o nouveau roman, o policial e o de ficção científica, o absurdo e o "noir", o histórico e o experimental. Sem esquecer o pseudo e o anti-romance dos vanguardistas.

Haveria muito a estudar, no campo do romance. As variedades orgânicas, a linearidade e as sinuosidades (ou mesmo a circularidade) do processo narrativo, a continuidade e a descontinuidade da ação, a dimensão espacial e a cronológica, os métodos e as estratégias (e os artifícios) do romancista, seus signos e códigos, a alienação e o compromisso, a premeditação e a arbitrariedade no discurso ficcional, a inspiração e o instinto, a racionalidade e o inconsciente. E mais: as fontes alimentadoras da criação romanesca ? a observação, a reflexão(o fluxo da consciência), a memória, a imaginação. Esta, a única praticamente capaz de criar ex nihilo. Tudo isso está fora dos objetivos do presente ensaio condensado. Não examinarei também as possíveis metamorfoses do romance em universo simbólico, reino alegórico, província parabólica ou estado metafórico. Ou a alquimia inter-semiótica que nos permite descobrir, na textualidade romanesca, a pintura, a música, a arquitetura: murais, afrescos, painéis, polípticos, quadros, estampas, gravuras; concertos sinfônicos, sonatas patéticas, barcarolas elegíacas, pastorais e heróicas, minuetos cheios de sol e noturnos pungentes; largas estruturas arquitetônicas, catedrais góticas e palácios da Renascença, capelas imperfeitas e mansões senhoriais ? e até presídios ou casas de orates.

Mas o romance pode ser também confissão, exercício espiritual de uma consciência em transe, panfleto político ou ideológico, janela aberta para o mundo ou telescópio apontado para essa galáxia que é a alma, escavação quase arqueológica nos estratos da psique. Não focalizarei os diversos processos, técnicas e metodologias narrativas, as várias espécies de tipos e personagens (e estereótipos). Não cogitarei de investigar em que medida o romance é cópia, imitação, reprodução, transcrição, reinvenção, recriação da vida, do fluir existencial, do destino humano, do mundo interior e exterior. Ou se ele pode transcender ? como realmente transcende, nos seus instantes-limites ? a visão especular stendhaliana, para adquirir o status de um universo concentrado, quintessenciado pelo poder (e pela magia) do verbo. Um universo onde pulsa, estremece e vibra a própria vida criada à imagem e semelhança da vida real.

João Manuel Simões é autor de cerca de 40 livros (de poesia, crítica, ensaios, crônicas, contos e pensamentos).